Três e meia da manhã. O Cabo entra no camarote, e me acorda. Mais um serviço, mais um dia de viagem. O choque dos pés com o convés acarpetado do camarote produz um ruído seco, enquanto tateio no escuro pelo trinco do armário. Não acendo a luz, para não incomodar os companheiros de camarote.
Maldito serviço dois por umi. Se vou entrar agora, de quatro às oito, logo estarei também de quinze às dezoito, e depois, o pior de todos os horários: zero às quatro. Estou cansado por ter dormido pouco, mas tenho de cumprir o que é meu. Afinal, “O Brasil espera que cada um cumpra o seu deverii.
Hoje são vinte e quatro de dezembro, véspera de Natal, e eu aqui, viajando. Se não fosse militar, queria ver alguém fazer isso, sem pedir para ganhar hora extra, adicional de periculosidade, e mais tantas outras benesses de pagamento.
Rodo o navio, para ver como as coisas estão. Chego ao passadiçoiii logo. Algumas rendições de serviço já começaram. O mar está calmo, o navio jogaiv pouco. Situação das máquinas, alvos no visual e no radar, próximo ponto de guinada, último ponto na carta, atividades para o dia. Algum exercício? Nenhum. Que bom, farei os que sempre faço comigo mesmo, para me manter sempre pronto, atento e, melhor: passar o tempo.
— Atenção, passadiço, manobra comigo, Tenente Rogério!
— Timoneiro ciente, governando no rumo da girov zero-sete-dois, rumo magnético zero-nove-três.
Pego o sextante, baixo as estrelasvi, calculo a posição: sempre adorei Navegação Astronômica! Algumas horas depois, o sol nasce, e começamos logo a faxina. Importante manter o navio limpo. Enquanto se lustram os amarelosvii, calculo o desvio da giro, e está tudo tranquilo. Toca a alvorada às seis, como sempre, e o navio como um todo acorda.
Nenhum alvo no visual, o radar está limpo. Faltam vinte para as oito, e daqui a pouco meu quarto vai acabar. Em cinco minutos, minha rendição vai chegar, e a alegria já toma conta de todos nós, inclusive timoneiro, sota-timoneiro e até mesmo o vigia.
— Homem ao mar por boresteviii — um grito repentino interrompe a conversa. Em frações de segundos, reflito sobre o inferno que é uma ocorrência dessas bem na hora de passar o serviço, sobre todos os procedimentos que tenho de fazer, e sobre a responsabilidade de não titubear, pois uma vida humana está em jogo.
Menos de meio segundo após o grito de “homem ao mar”, metralho o timoneiro e o sota-timoneiro com os comandos da manobra:
— Todo-leme-a-boreste-parar-boreste-seis-apitos-curtos!
Corro para a asaix de boreste, a fim de ver se guinar o navio para a direita não vai me jogar em cima de ninguém, nem pedra, nem banco de areia. Grito para o sinaleiro içar a bandeira OSCARx.
Vejo um homem de macacão flutuando, e fico aliviado, porque a popa do navio começa a se afastar dele. Se não tivesse sido a tempo, a corrente de sucção dos propulsores transformaria aquele homem em picadinho.
Mergulho de volta à parte interna do passadiço, pego o microfone do fonoclamaxi e tento não gritar, para que o som não saia distorcido:
— Homem ao mar por boreste! Homem ao mar por boreste! Guarnecer Detalhe Especial para Homem ao Mar — e aciono o alarme geral, que soa por todo o navio; os homens correm, mas ninguém se choca, nem cai. A tripulação toda forma em menos de um minuto e meio, nos dois bordos do navio.
— Apontem para o oscarxii — gritam os mais antigos de cada grupo, enquanto fazem a verificação de presença.
A repetidora da giro começa a dar seus estalos mais rapidamentexiii, a proa do navio começar a variar francamente. Mando que o sota-timoneiro dê máquinas adiante, toda a força.
— Timoneiro, inverte o leme!
A guinada vai diminuindo lentamente, e a proa começa a cair para bombordo. Chegam os papéis com os nomes dos presentes, e há uma falta: o Cabo Lourenço. Foi ele quem caiu n'água. “Droga, Lourenço, tinha de cair pela borda? Vamos salvá-lo, fique calmo”, penso, mas não falo nada. Agora corro para a asa de bombordo, ele começa a ficar visível.
“Pensa, rapaz, qual o bordo de recolhimento”, pergunto a mim mesmo. Olho as ondas e o anemômetro, mando reduzir as máquinas para dois terços. Estamos no rumo inverso, dois-cinco...
— Fora de giroxiv! Fora de giro!
Merda. Tinha que acontecer isso. Não posso parar para pensar.
— Ciente do fora de giro, governar em dois-sete-três magnético.
— Dois-sete-três magnético a caminho!
— Ciente. Sota-timoneiro, máquinas adiante um terço.
Olho para a proa. O vento! O vento entra por bombordo. Um dos marinheiros está na proa, com o fuzil apontado para as proximidades do Lourenço, para caso apareça algum tubarão. O Mestrexv já me olha, esperando para que eu confirme o que ele já sabe.
De novo, pego o microfone, e digo:
— Bordo de recolhimento: bombordo!
Claro. A regrinha básica, que treinamos desde as escolas de formação: vento-navio-homem. O navio tem uma área vélica muito maior, e o vento pode facilitar ou dificultar, aproximando ou afastando o navio do homem caído.
Mando parar as máquinas, “máquinas atrás um terço”, para frear o navio. Como se navios tivessem freios!
Logo o NATSALVOxvi está n'água, e o homem é recolhido. Graças a Deus!
Meu serviço da tarde corre bem mais tranquilo, sem problemas. A giro já havia sido restabelecida. Aproveito e faço vários outros adestramentos, preparando-me para qualquer outro imprevisto. Aliás, os imprevistos são como se fossem acontecimentos normais, quando você está preparado.
Tento dormir cedo, pois às onze e meia da noite vão me chamar de novo. É a rotina de viagem, é a vida que escolhi. Fui voluntário, ninguém me obrigou a entrar nessa vida da qual eu gosto, e muito!
Quando chego novamente ao passadiço, tudo está escuro, porém, a conversa está animada. Conseguiram ouvir pelo rádio os resultados do campeonato, e as rivalidades afloram na forma de brincadeiras e zombarias.
Recebo o serviço, assumo a manobra. Vou à asa de boreste, para me aliviar um pouco do calor. Porcaria sistema de ar-condicionado! Tinha de ir embaixoxvii agora? Um navio todo feito de metal, que pegou sol o dia inteiro, vira uma sauna... até de madrugada!
É nessas horas que aparecem as compensações da vida no mar: é noite de lua nova. Tudo escuro, mas veem-se todas as estrelas no céu. Uma faixa mais iluminada, a Via Láctea, e uma mancha no firmamento, que é uma nebulosa. Visíveis a olho nu!
O vigia, apreensivo, diz que há um objeto voador não identificado por bombordo. Atravesso o passadiço correndo, chego à asa de bombordo e vejo um pontinho luminoso passar, subindo do horizonte, passando pelo nosso zênite, e indo se pôr do outro lado. Caio na gargalhada, e falo com o vigia para deixar de se preocupar, pois é apenas um satélite!
Às duas e meia da manhã, vários riscos cruzam a abóbada celeste. Uma chuva de meteoritos ilumina rapidamente os conveses, contrastando com o ruído monótono e contínuo da vibração dos motores.
Entro no camarim de navegação, que fica a boreste, por ante a réxviii do passadiço. Fecho a porta de correr atrás de mim, e giro para a minha esquerda, ficando em frente à repetidora do radar. Seguro-me nas laterais, e olho a tela: nada. Aumento a escala, nenhum alvo, tudo bem. Vou voltar ao passadiço.
Mas cadê a porta? Só tem a anteparaxix! Preciso voltar, mas como? Bem, tem uma outra porta atrás de mim, que diz para uma escada. Posso descê-la e vir por fora, entrando no passadiço novamente pela asa.. Viro-me nos calcanhares, e... nada de porta! Sumiram!
Volto-me à tela do radar. A porta por onde entrei tem de estar à minha esquerda. Olho para a esquerda: nada. Olho para trás, onde a outra porta tem de estar: nada.
Começo a me preocupar. Estou preso, não tenho como sair, sou o Oficial de Quarto, sou responsável por mais de cento e vinte vidas, onde estão essas portas?
Olho à minha volta. O camarim de navegação está completamente normal, com a estante, a mesa de navegação, gavetas, computador, equipamentos nas anteparas, mas nada de portas. Como vou sair?
Nestes momentos, só a fé. Segurando-me na repetidora do radar, abaixo minha cabeça e peço a Deus que me mostre a saída, pois tenho de voltar ao passadiço. Eu não abandonei o serviço — um crime —, entretanto, como voltar? Mais de cem vidas dependem de mim. “Por favor, Senhor, me ajude”, penso, com toda a fé.
Abro os olhos, e a porta sanfonada que diz para o passadiço está ao meu lado, onde sempre esteve. Deslizo-a, abrindo a passagem, e entro no compartimento escurecido. Próximo ao teto, várias coisas brancas voam de um lado para o outro. Esfrego os olhos, mas elas continuam lá, como se fossem lenços brancos e transparentes, sendo puxados por fios invisíveis.
— Timoneiro, você tá vendo isso?
— Isso o que, Tenente — ele me pergunta. Todas somem. Assim, do nada, como surgiram. Melhor não contar o que aconteceu. Pode influenciar no serviço. Ainda temos uma hora pela frente.
Respiro fundo, e mais uma vez esfrego os olhos, debruçando-me junto às vigiasxx do passadiço. O timoneiro, dirigindo-se a mim e ao sota-timoneiro, irrompe numa risada de Papai Noel e fala:
— Feliz Natal para todos! Muita paz e felicidade! Rou-rou-rou...
Houve uma pequena pausa, em que todos nós tentamos entender o que era aquilo. Depois, ao vermos a figura do timoneiro, que era um pouco obeso, caímos na gargalhada. Papai Noel estava ali, conosco, de serviço no passadiço, e nem tínhamos notado...
Cumprimentamo-nos pelo Natal, lamentamos estarmos longe de nossas famílias, mas estávamos felizes por todos termos saúde e trabalho. Duro, nem sempre reconhecido, mas honesto e fonte de orgulho para todos nós.
Lembrei-me de minha avó, que adorava o Natal, e de minha bisavó também, grandes matriarcas de minha família. Elas faziam toda a festa acontecer, reunindo a família, que era grande, com as seis filhas e aquele bando de crianças, netos, do qual eu fazia parte. Pequenas lágrimas de saudade marejaram meus olhos, já que elas, infelizmente, não estavam mais entre nós.
Fui para a asa de bombordo. O mar de almirante quase não deixava o navio jogar, e a escuridão da lua nova não permitia que se divisasse o horizonte.
— Gente, que é isso? Passando o Natal longe da família — uma voz rouca feminina falou atrás de mim. Não podia ser. Era a voz da minha bisavó. Virei-me, entre assustado e saudoso, e lá estavam as duas. Mãe e filha, vestidas em túnicas alvas.
— Mas... mas — as palavras não saíam.
— Rogerinho — era como minha avó me chamava —, meu filho, nós viemos aqui para lhe desejar um Feliz Natal, e para dizer que estamos com muitas saudades de você. Já passamos na nossa antiga casa e vimos como as festividades estão. Não precisa se preocupar, tudo e todos estão bem.
Eu sentia o leve jogo do navio, inclinando ora para um lado, ora para o outro, compensando-o, para me manter bem equilibrado. Elas flutuavam a um palmo do convés.
— Meu filho, meu neto querido. Você e sua irmã foram os que eu mais ajudei a criar, e sempre me deram muito orgulho. Vê-lo neste navio, manobrando, é tudo o que eu poderia querer. Este é o maior presente que me deram, o de poder voltar para ver você crescido, homem-feito, formado Oficial pela Marinha, e embarcado num navio.
— Você, meu filho — minha bisavó falou — ainda vai dar muito orgulho pra gente! Pode escrever.
Não consegui falar nada. Dois pequenos rios, mistos de felicidade e nostalgia, desceram quentes pelo meu rosto. Quantas saudades daquela época!
— Temos de ir. Chegou a nossa hora.
Um facho de luz as banhou, fazendo que suas túnicas se tornassem ainda mais alvas e começassem a cintilar. Elas começaram a subir rapidamente, e quando passaram do tope do mastro, sumiram.
Enxuguei as lágrimas, limpei a garganta com um pigarro, entrei novamente no passadiço, e falei:
— Marque a proa, timoneiro!
— Zero-sete-dois, magnético zero-nove-três.
— Ciente. Que tenhamos todos um Feliz Natal...

iUm quarto (turno) de serviço, seguido por dois de folga, alternadamente.
iiVer https://www.mar.mil.br/dphdm/pesq/barroso/sinais.htm
iiiLocal onde se governa (dirige) o navio. Normalmente, é erradamente traduzido como ponte em filmes de língua inglesa.
ivBalança.
vAgulha giroscópica ou giro: é como uma bússola que sempre aponta para o norte verdadeiro. Funciona com o princípio do giroscópio, com motores elétricos. As agulhas magnéticas apontam para o norte magnético, e sofrem alterações pela declinação magnética, que varia de local para local.
viBaixar estrelas: significa medir a altura em graus dos astros notáveis com o sextante.
viiMetais dourados.
viiiBoreste: bordo (lado) direito do navio. Bombordo é o bordo esquerdo. Proa é a frente, popa é a parte de trás.
ixParte externa do passadiço.
xIndica a todos à volta que o navio está em manobra de recolhimento de homem ao mar.
xiSistema de altos falantes.
xiiComo se chama quem cai pela borda (Homem ao Mar).
xiiiEquipamento que envia informação eletromecânica para o radar, a fim de que possa também ter marcação verdadeira (ângulo que faz em relação ao norte) dos alvos.
xivA agulha giroscópica deixou de se orientar, ou seja, não aponta mais para o norte verdadeiro.
xvMilitar mais antigo com especialização em Manobras e Reparos, responsável por todas as manobras feitas no convés do navio, como atracação, desatracação, fundeio, lançamento de embarcações, entre outras.
xviSigla que designa o militar que fez curso de natação de salvamento.
xviiIr embaixo: deixar de funcionar, dar defeito.
xviiiPor ante a ré: atrás, na parte de trás.
xixParede do navio. Os conveses são os pisos.
xxJanelas.