Drama
Depois que perdi minha família, a depressão quase se
apoderou de mim. A tristeza era minha companheira diária, e não
raro eu me surpreendia chorando a falta deles. Mesmo as brigas que
tínhamos me faziam falta, e as consultas com neurologistas acabavam
sempre com a recomendação de algum remédio que me entorpecia os
sentidos, deixando-me sonolento, envolto numa modorra de dar dó.
Uma amiga médica, no entanto, tomada de compaixão e
conhecedora do eu antes das tragédias pessoais, inscreveu-me num
programa inovador, que pesquisava curas para a depressão. Passei a
tomar um medicamento que realmente não me afetava em nada. Nem na
depressão!
Com as consultas e um pouco de orientação, voltei a
fazer exercícios, a ocupar a minha mente, e então pude sentir os
benefícios do novo remédio. Realmente funcionava muito bem... bem
até demais! Comecei a desenvolver novas capacidades, as quais
mantive em segredo. A droga experimental me deu a habilidade da
telecinese, além da projeção emocional.
A princípio, eu conseguia mexer pequenas bolinhas de
papel e fazer com que as pessoas à minha volta tivessem sutis
variações de humor. Até aí, nada demais, apesar de não ser algo
exatamente normal.
Um dia, porém, ao sair atrasado para o trabalho, o
carro não quis pegar. Tentei algumas vezes, sem sucesso, até que,
num rompante, soltei um berro e bati com as duas mãos no volante: o
carro foi imediata e rapidamente arrastado dois metros adiante, quase
batendo noutro que estava parado na vaga à frente. Percebi, então,
que minhas emoções influenciavam nos meus ditos poderes, e passei a
praticá-los em lugares desertos.
Ao ser capaz de levantar carros com facilidade,
movendo-os de um lado para o outro, perguntei-me: “será que posso
me mover”? A resposta foi,
claro, uma experiência que começou com um formigamento que se
espalhou como um raio pelo
meu corpo, e eu fui capaz de voar!
Sim, agora eu realizava meu sonho de criança, conseguia voar sem
nenhum aparelho!
Voltei para casa e, ao apontar o carro para a garagem,
fui surpreendido com uma arma na minha cabeça. Soltei lentamente as
mãos do volante, levantando-as, e olhei na direção do ladrão, que
começou a fungar. Ato contínuo, abaixou a arma, chorando, e
sentou-se no meio-fio, maldizendo aquela vida e sua sina. A arma,
sozinha, levitou de sua mão e se desmontou, para seu espanto.
Levantando-se e enxugando suas lágrimas, ele sumiu, se benzendo,
para nunca mais aparecer. Deu um pequeno sorriso e entrei
tranquilamente na garagem.
À noite, na televisão, anunciaram que construiriam um
acelerador de partículas no interior do Nordeste, e o país, que já
estava dividido, ficou ainda mais partido. Quase todos os segmentos
da sociedade, independentemente de viés ideológico, classe social e
grau de instrução, gritaram que o país tinha problemas muito mais
sérios a tratar. O governo, no entanto, querendo fazer parte de uma
nova iniciativa para o desenvolvimento de uma fonte de energia limpa
e duradoura, achou que seria bom investir o que lhe restava de caixa
no projeto.
O grande problema foi que não conseguiam trabalhadores
para a faraônica obra, visto que a população, em grande parte, era
coberta por programas assistenciais do governo; sua única fonte de
renda e, provavelmente, de alimentação. O emprego na construção
do acelerador lhes daria melhores condições, porém, se aceitassem
o trabalho, seriam automaticamente desligados.
Foi então que o governo lançou uma campanha por todo o
país, chamando e recrutando trabalhadores de diversas áreas, a fim
de que pudesse tocar o projeto adiante. Dadas as proporções
gigantescas do projeto, em praticamente todas as áreas havia
necessidade de pessoal.
Como não tinha mais nenhuma ligação com minha querida
e maravilhosa cidade, decidi tentar a vida naquelas paragens. Já
conhecia o Nordeste, seu clima ensolarado e pessoas hospitaleiras, e
melhor: ainda tinha parentes lá.
A localização do acelerador era numa cidadezinha a
pouco mais de meia hora de carro de onde meus parentes moravam, na
capital do estado, e seria ótimo conseguir um lugar para morar lá.
Trabalho e praia, tudo que um carioca marinheiro precisa para crescer
forte e feliz. E com sol o ano todo!
Seis anos e vários desvios de verba depois, o
acelerador estava pronto para o primeiro teste. Coincidentemente, a
capital e a cidadezinha quase não tinham mais crime. Um misterioso
homem voador assustava os ladrões, fazendo com que eles chorassem
como crianças, ou mesmo rissem até molharem as calças. Por fazer
aflorar as emoções de uma maneira estupidamente intensa, a imprensa
começou a chamá-lo de “Drama”, um nome que pegou.
Drama, claro, era eu. Um símbolo. Não tinha uniforme.
Usava roupas e sapatos comuns, mas aparecia de onde menos se
esperava. Para manter a identidade secreta, usava uma balaclava
preta, e era capaz de dominar grupos de bandidos, fazendo com que se
entregassem, aos prantos, à polícia. As cadeias locais começaram a
sofrer de superlotação...
Eu trabalhava na administração do projeto, e fui
convidado para assistir ao teste. Os cientistas puderam trazer suas
famílias.
Duas equipes saíram em carrinhos elétricos, desses de
campo de golfe, para verificar se havia alguém, antes que os
poderosos ímãs fossem ligados, dando início à aceleração. Uma
delas foi para o anel maior, enquanto a outra percorria o menor. Cada
vez que passavam por uma seção, as portas estanques eram
hermeticamente fechadas.
Tudo pronto, hora de começar. Uma das esposas dos
cientistas deu por falta de seu pequeno, e todos começamos a
procurá-lo pela ampla sala de controle. O tempo passava, os
procedimentos de acionamento eram cumpridos, e a angústia daquela
mãe aumentava. Sensibilizado, projetava calma em seus sentimentos,
mas o instinto materno era forte demais. Aliás, como deve ser.
Gritos interromperam meus pensamentos: era um dos
cientistas operadores, apontando para um dos monitores. Olhamos para
ele, e imagem aterrorizou-nos a todos, sem exceção: o pequeno tinha
se escondido num dos corredores do anel maior, e agora batia na
porta, pedindo para sair.
Para piorar as coisas, ele havia mexido numa das
válvulas de resfriamento do condutor secundário, o que causaria uma
explosão com consequências que ninguém sabia ao certo quais
seriam. Nada para se preocupar, bastava apenas apertar o botão de
parada de emergência, esperar as partículas pararem, e ir buscar o
garotinho. Seria ótimo, se a
parada de emergência não falhasse miseravelmente.
Os berros de socorro da
mãe se juntaram aos uivos da sirene de alerta de acionamento,
misturando-se ao burburinho das pessoas que não sabiam
o que fazer. Aproveitando-me da atenção que estava concentrada no
monitor, tirei a camisa social que usava, ficando apenas com uma
camiseta branca, e vesti a balaclava. Voei da sala, arrebentando as
portas pelo caminho, o mais rápido que podia.
Quando cheguei ao menininho, ele chorava pela mãe, mas
me reconheceu, chamando-me de “Dama”. Tudo bem, nem todos
conseguem falar “Drama”, principalmente se nem falam direito
ainda.
As luzes estroboscópicas vermelhas giravam no ritmo das
sirenes, encimadas apenas pelo zumbido intermitente e crescente do
acelerador. Tentei pegar o menino para sair dali, mas o campo
magnético puxou-me pela fivela do cinto, prendendo-me de barriga ao
tubo condutor principal. Não conseguia me mover, muito menos tirar o
cinto!
Uma voz no comunicador
da parede gritava
para que eu saísse dali, pois tudo estava prestes a ir pelos ares.
Fiz o garotinho flutuar e o enviei de volta à sala, puxando
todas as portas que tinha arrombado para perto da seção onde eu
estava. Depois,
não me lembro de mais nada.
Acordei num leito de hospital, sem saber direito onde
estava. Sabia que já tinha estado naquele lugar, mas não me
lembrava onde era. Olhei pela janela, e vi uma parte da minha cidade
natal. Cidade natal? Rio de Janeiro? Mas eu estava no Nordeste até
bem pouco tempo...
Olhei em volta e vi a minha amiga médica sentada numa
poltrona, dormindo. A porta do quarto entreaberta, e um policial de
cada lado. As fardas da Polícia Militar do Rio confirmavam minha
suspeita.
Chamei minha amiga, que
acordou. Sendo seu paciente,
dava a ela o privilégio de entrar e sair quando queria. Ela
ficou feliz em me ver, mas a interrompi; queria saber como eu tinha
ido parar ali. Soube por ela que tinha salvo o garotinho e todos os
que se encontravam no raio destrutivo da explosão do acelerador.
Fiquei com mais de cinquenta por cento do corpo queimado, e quando
viram que eu era marinheiro, enviaram-me de volta para o hospital da
Marinha, no Rio de Janeiro. Fui direto para a Ala de Queimados, e lá
permaneci em coma por quase um mês.
Quis saber sobre o
motivo dos policiais na porta. Ela me disse que havia dois: com a
explosão, a identidade secreta de Drama havia sido revelada, e eu
seria condenado por fazer justiça com as próprias mãos; e os
bandidos, sabendo quem os combatia eficazmente, não hesitariam em me
eliminar. Eu podia voar, desmontar armas e fazer criminosos
se entregarem à polícia dançando quadrilha de São João, mas não
era invulnerável.
Ser condenado por fazer o bem... Só mesmo neste país!
Eu nunca tinha encostado a mão num meliante, e fazia com que eles se
entregassem às autoridades competentes. Portanto, não era,
exatamente, justiça com as próprias mãos. Eu me tornava mais um
incompreendido...
Comecei a sentir muita dor, e minha amiga chamou a
enfermeira, enquanto aumentava a dose de morfina do meu soro. Dormi.
Acordei sozinho, de
noite, e tentei usar meus poderes. Ao fazer o esforço mental, todo o
meu corpo respondeu com uma dor pungente, como se várias espadas
tentassem me
atravessar. Melhor começar com alguma coisa simples... o copo de
plástico vazio em cima do criado-mudo! Consegui movê-lo, mas senti
muita dor. Vou esperar melhorar. Preciso ao menos tentar me sentar...
nada. Dor demais. Durmo novamente.
Acordo com o enfermeiro me dizendo que virá me dar um
banho mais tarde, para tirar a pele morta e enrugada. Ele me diz que
“vai doer um pouquinho”. Em toda a minha experiência de vida,
sempre que alguém da área de Saúde me disse que doeria “um
pouquinho”, é porque arrancariam o meu couro, ou coisa parecida.
Preparei-me para o pior.
No dia seguinte, ainda
com os novos curativos e agradecendo a Deus pela bendita morfina,
vejo minha
amiga médica novamente. Fico
feliz com aquela presença feminina, com seu jeito de menina, e
rapidamente me lembro de que ela é casada, e tem duas filhinhas
lindas. Não me permito pensar mais nada, só tento projetar mais
alegria em sua mente. Consigo, mas sou parado pela dor no corpo
inteiro. Essa droga não vai passar?
Ela me cumprimenta, eu lhe dou um polido “bom dia”,
me viro para os policiais do lado de fora, e os cumprimento também.
Um deles me olha e sorri, desejando-me um bom dia, levando uma
imediata reprimenda do outro.
Minha amiga diz que quer me fazer uma pergunta, mas não
sabe como. Eu lhe digo que não tenho nada a lhe esconder, e que pode
perguntar. Ela, então, me olha nos olhos e me pergunta como foi que
desenvolvi poderes, transformando-me em “Drama”. Minha resposta
não poderia ser outra: tinha sido o remédio, claro.
Ela contorna a cama.
Olha pela janela e volta a me encarar. Solta
um longo suspiro, e fala que não sabe como vai me dizer o que
precisa me contar. Eu
me ajeito na cama, a morfina quase não segura a dor. Ela me diz
que o remédio jamais poderia ter me causado isso. Eu lhe pergunto o
que poderia ter causado, se não fosse o remédio? E
as centenas de bandidos presos? Os resgates miraculosos? E as
melhorias na segurança das cidades onde eu atuava? Eu voava
e manipulava objetos mentalmente,
vai me dizer que não tinha superpoderes?
Ela me conta,
então, o que quase me faz
parar o coração: faço
parte do grupo de controle. Desde que comecei o tratamento, há mais
de seis anos, que só tomo placebos!
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