Centro
da cidade vazio. Onze e pouco da manhã. Olho para o relógio: onze e
treze. Afasto a insegurança do “onze e pouco” com a certeza da
hora exata. Nada como viver num mundo seguro.
Por
que eu estava no centro da cidade, num domingo de manhã? “Eu
deveria ter feito isso numa hora de almoço”, pensei. E o Museu
Naval ficava bem mais perto a pé, do trabalho, que de metrô, da
minha casa. A preguiça é mesmo irritante! Nem vou comentar sobre a
cultura carioca de deixar tudo para a última hora...
Eu
queria, por causa do livro novo, fazer uma pesquisa para saber
quantos escaleres havia numa caravela, à época dos descobrimentos.
As maquetes do Museu Naval são acuradas, detalhadas, bem feitas. Têm
todas as informações de que preciso.
Saio
da Praça XV e decido caminhar pelas vielas próximas, para observar
a arquitetura dos velhos prédios, todos casarões antigos. Minha
mãe, depois do curso de turismo, me disse que as grades das sacadas
foram importadas da Inglaterra e França, pois não havia fundições
aqui. Lindas, trabalhadas, com curvas suaves.
Ando
com o olhar para o alto, prestando atenção a elas, aos azulejos e
até mesmo aos afrescos. As construções, antigas, ainda retêm a
beleza, mas poderiam estar muito mais conservadas. Um ou outro par de
turistas tirando fotos, aproveitando o belo dia de outono.
Entro
no Arco do Teles e, ao fazer a curva, sou interrompido pelas lamúrias
de um mendigo, chorando de fome. Passo direto, ignorando-o, na vã
esperança de que alguém vá fazer algo sobre isso. Não é problema
meu. Só que não tem mais ninguém ali; pelo menos, nenhum outro ser
material.
Volto-me
na direção dele, que aumenta as lamúrias, chorando ainda mais
alto, pedindo-me algo para comer.
— Está
com fome, rapaz — pergunto a ele, e me sinto imediatamente um tolo,
por querer saber o óbvio.
— Por
favor, uma esmola, pra mim comer um pão — a voz dele se esvai num
fiapo, quando termina a frase, soluçando. Seu desespero denota que
está já há um tempo considerável sem se alimentar.
— Peraí,
que eu já volto.
Alguma
coisa deve estar aberta. Pela hora, os restaurantes devem estar
abrindo. Só tem um detalhe: é domingo. É o Centro. De manhã. Quem
vai abrir o que aqui?
Atravesso
a Primeiro de Março, subindo pela rua do Rosário. Estou me
afastando muito do pobre mendigo. Chego a uma bendita lanchonete,
aberta. É onde eu, às vezes, tomo um café com pães de queijo com
o pessoal do trabalho, para espantar aquela fome de meio da manhã.
Peço
dois salgados grandes e um copo de mate. Nem me importo com o que é;
apontei na pequena vitrine do balcão, pedi para viagem, paguei, saí
no pé que entrei.
Volto
o caminho todo até reencontrar aquele pobre homem, que sorri ao me
ver. Ele pega um dos salgados — acho que era um croissant
de queijo com presunto —,
e me oferece o outro. Pede que me sente com ele para comer.
Agradeço-lhe, mas declino. Digo que o outro é para ele comer mais
tarde. Ele insiste, e eu digo que não estou com fome, mas me
sentarei com ele e o verei saciar sua
fome.
Sento-me,
tentando não torcer o nariz àquele cheiro de urina impregnado nele.
Meu estômago se contorce. Felizmente, domino as ânsias
de vômito que aquele odor intenso me causa. Ele come como se não
houvesse amanhã, nem cidade, nem um mundo à nossa volta.
Bebe
o mate, os goles fazendo aquelas ruídos terríveis de quem tem muita
sede. Olho e vejo sua glote subindo e descendo, sincronizada com o
barulho. A pele do pescoço encardida, a face envelhecida por tanto
sofrimento.
Apesar
de tudo aquilo, sinto-me feliz por diminuir o infortúnio na vida de
um irmão. Eu me levanto para sair, ele também, e fala:
— Hora
de lhe agradecer, meu irmão.
— Fique
tranquilo, rapaz. Acredita em Deus?
— Acredito,
sim.
— Então
reza pra ele. Peça pra
ele não se esquecer
do
careca de óculos que parou pra te ajudar.
Disse
estas palavras e me virei para sair. Ele me pediu para esperar. O que
aconteceu a seguir foi totalmente inesperado.
Seus
sapatos começaram a se desfazer em faíscas, evaporando-se
no ar como fagulhas. Suas roupas também, de baixo para cima,
enquanto um brilho ofuscante me fez proteger os olhos. Ouvi na minha
cabeça uma música estranha, mas linda, como se um coro de anjos
cantasse.
Um
calor irradiava daquele homem, que me envolveu e me fez sentir bem,
tranquilo, benquisto, seguro. Abri os olhos e aquele mendigo estava
vestido com longas vestes alvas, tão brancas que o sol da manhã o
fazia brilhar. Só aí me lembrei de pegar o celular para filmar
aquilo, mas o mendigo fez um
gesto para que parasse. Guardei o telefone.
— Quem
é você — perguntei.
— Não
interessa quem sou. Interessa o bem que me fizeste.
Olhei
para os pés dele. Os sapatos rotos tinham se transformado em
sandálias, daquelas antigas, amarradas com finas tiras de couro.
Ele
pôs as mãos em meus ombros. Aquele fétido odor de urina seca tinha
se transformado em perfume de rosas, e o meu espírito estava em paz.
— O
que deseja, meu irmão? Pede, e eu te darei.
— Como
assim? Eu apenas queria vos ajudar —
eu disse, caprichando no
português.
— Posso
te dar o que quiseres. Poderás ser rico, famoso, poderoso.
Imediatamente
pensei em quanta gente eu poderia ajudar se tivesse dinheiro e poder.
As dívidas acumuladas, o cheque especial. Imagine poder ir morar num
país sério, afinal!
Mas
dinheiro e poder talvez me transformassem em alguém que massacrasse
os outros para atingir meus
objetivos. É a chamada “picada da mosca azul”. Melhor não
arriscar. Melhor eu continuar com a minha vida, e deixar que Deus
decida, pelo meu esforço, quando tem ou não de me recompensar. Se
bem que acho que já me recompensou. O conhecimento, os amigos, as
oportunidades. A saúde, a família. Não ter defeitos físicos que
me dficultassem a vida, mas me ensinassem a ser mais humilde.
Sim, esta
era a minha recompensa: poder ganhar a vida honestamente, com o suor
do meu trabalho.
Se
eu não tinha ficado rico até agora, com muito trabalho, esforço e
dedicação, não ficaria mais. Jogava na loteria, no bolão dos
amigos, por desencargo de consciência, ou mesmo pelo medo de ter de
abrir o escritório sozinho, se todos ganhassem, menos eu!
— Podeis
me dar a paz no mundo? Podeis terminar com a miséria no Brasil?
Podeis tornar nosso país, tão rico, tão diverso, o coração do
mundo? Escuto falar que somos o “país do futuro” desde criança;
podeis me dar a certeza de que não perdemos o bonde da História?
Podeis fazer com que o futuro finalmente chegue à nossa tão
combalida pátria —
perguntei, aos prantos. A
emoção me tomou. O amor ao meu país ainda fala alto.
— Por
que pedes
para os outros?
— Se
fiz um bem a vós, poderíeis fazer um bem a todos nós.
— Tu
fizeste um bem a mim. Eu farei um bem a ti.
— Obrigado,
mas se puderdes
fazer bem à minha pátria, ficarei feliz. Se não o puderdes fazer,
pedir‑vos‑ei que, se vos aprouver, me defendais perante
Deus.
— Tens
de
pedir algo para ti! Não queres riqueza? Poder?
Comecei
a achar estranha aquela insistência. Por que a obsessão com
dinheiro e
poder?
— Eu
vos agradeço, mas é melhor que eu me vá. Desejo-vos tudo de bom.
O
homem soltou um grito de raiva. Suas vestes repentinamente se
tornaram escuras, e sua pele ficou coberta por grossas escamas
cinzentas. Dei dois passos para trás, mas bati numa parede
invisível. Dei as costas para ele e já ia começar a correr, mas
aquele muro era tão intransponível,
quanto impercetível.
Voltei-me
a ele, e seus olhos estavam vermelhos e brilhantes.
— Hipócrita,
arrogante, adúltero —
ele gritou —
tua hora chegou, eu sou o
instrumento do teu fim!
Levantou
a mão direita, e garras negras e afiadas cresceram. Senti uma dor
lancinante quando ele as cravou no meu peito, rindo.
Tudo à nossa volta escureceu, e ouvi milhares de gritos lamurientos,
como se a perdição da humanidade se tornasse
um horripilante coro.
Por
instinto, segurei o antebraço daquele terrível ser, enquanto
tentava em vão me manter em pé. Não morreria de joelhos. Minha
arrogância e meu orgulho não me
deixariam!
— Onde
está o teu Deus agora? Não crês
n'Ele?
Dize-me, onde está ele —
Perguntou-me, com uma
gargalhada que me causou um arrepio congelante.
Olhei
para aquelas garras enterradas
no meu peito, e vi um fluxo brilhante sair de mim e se dissolver na
altura do cotovelo dele. Minha alma, minhas energias, minhas
lembranças, tudo estava deixando o meu corpo, sendo levado por ele.
Caí
de joelhos, mas não podia me dar por vencido. Mirei
aqueles olhos, e vi que minha
fé talvez não
me salvasse.
— Você
só está aqui porque Deus lhe permite —
falei, num grande esforço.
Ele gargalhou novamente.
— Teu
Deus não está aqui. Ele te abandonou, idiota. Ele não quer saber
de ti, pois tu O renegaste!
— Não
reneguei!
— Sim,
tu O renegaste, quando continuastes a ser o arrogante adúltero que
és! Ele te deu tudo, e tu O pagaste com traição! Tua hora chegou,
tua alma é minha!
— Eu...
não... acredito nisso!
— Pois
está acontecendo —
outra gargalhada satânica —,
e tu virás comigo!
Já
não tinha forças. Ele me vencia, tirava tudo de mim. Logo eu seria
absorvido por aquele ser, e restaria apenas o meu corpo sem vida,
como sinal de minha passagem pela Terra. Num último esforço, falei:
— Vou...
feliz... Meu último... ato... f-foi... de... ca... ca... caridade —
gritei, com o que me restava de fôlego.
Um
longo e estridente
grito reverberou pela viela. Ele puxou
suas garras de mim, soltando imprecações em direção aos céus, e
eu me senti subitamente melhor.
— Eu
e tu ainda conversaremos novamente —
ele gritou, apontando para mim —
Eu voltarei!
Ele
se tornou gradativamente transparente,
até sumir. Levantei-me
lentamente, olhando minha camisa ensanguentada e rasgada. Abri-a e
olhei meu peito, a tempo de ver uma cena
insólita: as feridas se fechando, sem deixar cicatrizes.
Tudo
ficou claro novamente. Uma guia com um grupo de turistas entrou na
estreita rua de paralelepípedos. Eu fechei minha camisa, e me virei
antes que me vissem naquele estado.
Mesmo
não sendo católico, entrei na igreja de Nossa Senhora da Lapa dos
Mercadores, sentei-me num dos bancos, e fiz uma prece. Agradeci a
Deus por mais aquela oportunidade, prometi melhorar, e fui embora.
Gostei muito.
ResponderExcluirObrigado, Dani. Recomende!
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