É, eu me lembro bem quando comecei a conversar comigo
mesmo, como faço agora. Foi logo depois de eu ter me tornado amargo
e rancoroso. Solitário. Eu tive família, sabia? Claro que sabia!
Estou falando comigo mesmo...
O mundo virou um lugar inabitável, é tudo uma merda, e
eu peço todos os dias para Deus acabar comigo. Quero rever minha
família. Paradoxalmente, procuro desesperadamente sobreviver nesse
“admirável mundo novo”.
Eu me lembro de quando os fogos pararam de falar. Os
fogos, porra, não se lembra? Não me lembro? Essa coisa de falar
comigo mesmo me confunde, às vezes.
Fogos-fátuos sempre falaram. Nunca descobriram uma
razão científica para isso. Os que vinham de pântanos eram os
puros, mas só uivavam, rugiam ou assoviavam canções. Algumas sem
nexo, outras transformadas em sinfonias pelos nossos compositores.
Já os que surgiam dos túmulos ditavam cartas, poemas,
ou mesmo davam discursos. Alguns deles até permitiam diálogos,
respondendo a perguntas e travando discussões, porém, nunca
acaloradas. Todos sabíamos que não era a personalidade do cadáver
que ali se encontrava, pois as ideias eram as mais variadas. Até
divergiam ao extremo oposto da opinião da pessoa falecida, com vozes
totalmente diferentes.
Um fogo-fátuo por vezes assumia uma voz feminina num
túmulo masculino; o contrário também se dava. Eram manifestações
de entidades inteligentes. Quando se perguntava a eles o que eram, ou
quem tinham sido, não respondiam. Nunca nos garantiram a vida após
a morte.
Mas os fogos se calaram antes de uma eleição. Uma
grande “festa da democracia”, os imbecis diziam. “É o auge da
democracia”, outros berravam. Mas eu sabia. Alguma coisa
estava para acontecer, e aconteceu mesmo. Eu esperava que as coisas
fossem difíceis, mas não pensava que seriam o fim do mundo.
Era eleição. Depois da campanha mais baixa e torpe de
todos os tempos, um dos partidos ganhou, quebrando décadas de
hegemonia do que governava. Mesmo com as fraudes eleitorais, já
conhecidas, não houve jeito: tiveram de entregar o poder aos
adversários de tantos anos.
Porém, grupos que apoiavam a situação tinham passado
toda a campanha dizendo que, se perdessem, haveria guerra. Eu pensava
que seriam greves, pequenas sabotagens aqui e ali, coisa que passaria
depois do primeiro ano. O normal de sempre. Mas eu sabia que seria
diferente. Eu sentia.
Antes de sair, o “partidão”, como se referiam a
ele, orquestrou várias ações que tornariam nossas vidas mais
difíceis. Retiraram boa parte das unidades militares das fronteiras,
permitindo que drogas e armas entrassem livremente, e abastecessem o
crime nas várias favelas das capitais e cidades maiores. Quanto mais
lucro do tráfico, mais dinheiro para treinamentos e armas.
Aceitaram dezenas de milhares de imigrantes,
legalizando-os automaticamente, e os colocaram junto às favelas.
Muitos eram ex-integrantes das forças armadas de seus países de
origem, bem treinados e preparados no uso de armas e combate corpo a
corpo.
Concederam vistos a quaisquer habitantes de países
notoriamente conhecidos por abrigarem grupos terroristas. Muitos
fugiram de seus países de origem, procurando uma terra pacífica.
Outros vieram ajudar a acabar com o futuro, trazendo seu conhecimento
em terrorismo e guerrilha urbana.
E aí, começou: grupos simpatizantes aos perdedores
começaram a achacar não somente os notoriamente partidários dos
vencedores, mas qualquer um que não os apoiasse. A princípio, eram
somente ataques verbais, depois, houve uma escalada da violência, e
a polícia começou a intervir.
Os policiais deixaram de conseguir controlar as arruaças
quando grupos fortemente armados começaram a tomar parte nelas.
Muitas mortes foram registradas dos dois lados, e as forças armadas
também foram chamadas, para garantir a lei e a ordem. Foi nesse
momento que minha vida começou a ruir.
Não, cara, nada disso! Olhe só: eu estava indo à
padaria com meus dois filhos. É, um adolescente, e o outro pequeno.
Estava feliz porque começaria a aprender a ler e escrever no ano
seguinte.
Ao voltarmos, nos deparamos com um grupo de partidários.
“Lutadores da Liberdade”, se chamavam. Perguntaram-nos sobre quem
apoiávamos. Disse-lhes que não apoiava ninguém, e que só queria
viver minha vida em paz. “Não queremos problemas”, falei.
Eu e meu filho mais velho tentamos lutar com eles quando
avançaram em nossa direção, com os olhos injetados de sangue.
Conseguimos nocautear uns quatro, mas eram muitos, e acabamos presos.
Ali mesmo, na calçada, cortaram os tendões dos braços e pernas do
meu filho adolescente, transformando-o num boneco ensanguentado que
urrava de dor. Mandaram-no se calar, ou fariam com que silenciasse de
vez.
Gritei que faria o que quisessem, mas um dos bandidos
que fazia a segurança do grupo cortou-lhe o pescoço com uma katana,
fazendo com que se engasgasse em seu próprio sangue. Daí,
viraram-se para meu filho mais novo e o pegaram, segurando seus
quatro membros, puxando cada um numa direção. A cada estalo dos
ossos saindo das articulações, uma rachadura em minh'alma, já
despedaçada. Por fim, o bandido pegou sua espada e esquartejou meu
pequeno. “Tenha uma boa vida”, me disseram, e foram embora.
Não sei quanto tempo fiquei ali, afogando-me na
confusão de sentimentos de ódio, perplexidade, dor, tristeza e
desespero. Estranhamente, não verti uma única lágrima, apenas me
ajoelhei ao lado dos corpos daqueles que foram minhas maiores
riquezas. Nenhum grito, suspiro, nenhum “ai”. Ali fiquei em
dúvida da existência de um Deus, e quais seriam seus desígnios.
Pedi a um desses burros-sem-rabo que me ajudasse a levar
os cadáveres para casa, e lá os velei. Enterrei meus filhos com uma
esposa em choque ao meu lado. Não demorou muito, e a enterrei
também. Definhou até a morte, sem entender o porquê de tudo
aquilo.
A sequência de eventos foi quase óbvia: as forças
armadas, sucateadas, não duraram muito contra os bandidos e
terroristas, financiados pelas fortunas acumuladas pela corrupção,
bem como outros países simpatizantes. Uma guerra civil se instaurou
no país, e todos pensamos que ela acabaria quando os perdedores
fossem novamente guindados ao poder.
A chamada “esperança” devolveu o poder que tinha
ganho democraticamente. “Esperança”... Sei! Nunca acreditei em
políticos santos, nem em salvadores da pátria. Mas
entregaram o poder de volta e os perdedores, claro, aceitaram... e
este foi seu maior erro.
Os bandidos e terroristas que apoiaram o novo —
ou velho? — governo
quiseram fazer imposições, mas quem é autoritário só aceita
condições até conseguir o que quer. Até aí, o mundo inteiro só
olhava, de longe, o
que acontecia nestas paragens; entretanto, quando os terroristas
detonaram duas bombas sujas em estações do metrô do Rio e São
Paulo numa terça-feira, às cinco e meia da tarde, as coisas
começaram a mudar.
Em duas semanas, o
número de mortos chegou à casa das centenas de milhares, sem falar
nos outros tantos contaminados, que também se tornaram óbitos. O
mundo decidiu, então, intervir, mas o governo não aceitou países
que não professassem a mesma forma de governo. Como era de se
esperar, uma das potências não admitiu ficar de fora, e a escalada
de violência entre eles resultou numa guerra global. Evitaram, no
entanto, usar armas de destruição em massa.
Drogas, armas e
até veículos militares continuavam
a entrar livremente pelas nossas fronteiras. Os terroristas, perdendo
o apoio que tinham, mantiveram sua união com os bandidos, e
contaminaram a água do país, dono de vinte
por cento das reservas
potáveis
mundiais. Bombardearam
cidades com aviação de caça. Mais
algumas dezenas de milhões morreram.
Mantive-me vivo
porque fugi para o norte, e
comecei a trabalhar numa colônia de pescadores. Sabia
navegar, e isso bastava. Tive de fazer de conta que só sabia assinar
o nome, a fim de não atrair atenção. Falava errado, também. Mudei
meu sotaque.
Bebia água de coco,
suco de melancia, ou sangue de peixes marinhos. Comer, só peixe.
Vivia só e falava o
necessário. A dureza e falta de palavras se encaixava perfeitamente
na vida de “pescador sem estudo”.
Quando o mundo virou
um lugar estéril, com cidades-estado amuralhadas, eu já estava com
pouco mais de setenta anos. Consequência da guerra e do terror. A
população mundial caiu para um décimo do que era, beirando os
setecentos milhões. Não
sei ao certo os números, porque a guerra acabou com toda a
infraestrutura.
Não tínhamos mais
comunicações de longa distância, internet, e até mesmo canais de
televisão eram proibidos, porque a geração de energia era
insuficiente para todos. Sim, sim, usávamos a bosta dos animais que
criávamos para produzir metano e mover uma pequena termelétrica.
Deixei de ser
pescador para ser bosteiro,
como denominavam na cidade em que passei a morar. A economia girava
praticamente em torno
da geração de energia, e o escambo era a moeda. Quanto atraso, e
tudo por conta da nossa própria idiotice.
As costas me doíam,
mas ser bosteiro me garantia um bom sustento. Num dos dias em que
estava lá, trabalhando, um dos adolescentes maltrapilhos da pequena
cidade chegou esbaforido. Sentou-se, arfando, e disse que os fogos
tinham voltado a falar. Décadas em silêncio, e voltaram a falar.
Por que só agora?
Depois de retomar o
fôlego, ele me disse que estavam me chamando. “Quem é que tá me
chamando”, perguntei-lhe, com medo da resposta, que eu já
imaginava: os fogos. Sentei-me. Respirei fundo. Quis saber se tinha
certeza, afinal, tinha muitos Paulos na nossa cidade-estado. Ele me
respondeu que os fogos chamavam pelo “Paulo bosteiro”. Era eu.
Sem dúvida. Eu mesmo.
Fui lá, e várias
chamas se faziam presentes nos túmulos. Tinham curtas, porém
diferentes durações, produzindo chiados aleatórios. Uma pequena
multidão já se formava em torno dos sepulcros. Apurei os ouvidos,
mas só consegui discernir os “fsssssss”
dos gases escapando. Nada.
Dei de ombros e me
virei, quando ouvi a vozinha do meu pequeno me chamar:
— Papai...
Papai... Não vá, fique comigo...
Meu garotinho. Uma
alma imortal num corpo jovem, depedaçado pela crueldade, há tantas
décadas. Traquinas, mas carinhoso. Cheio de vida, ao ponto de deixar
eu e minha mulher de cabelos
desgrenhados ao fim do dia.
Não. Não é
possível. Os fogos são inteligentes, mas nunca
se apresentaram como pessoas que tinham vivido antes. É um truque,
só pode ser!
— Ôxi! Tu é quem
— perguntei,
aos berros e irado, com
meu sotaque, àquela
voz.
— Sou eu, papai.
Eduardo. Você tá muito triste. Não pode ficar assim, papai.
— Tu é quem,
fiduma égua —
insisti, contendo as
lágrimas, fazendo-me de firme.
— Papai, você
sempre falou que quem trocou minha primeira fralda, quando eu era
bebezinho, foi você. E me deu o primeiro banho também.
O peso da amargura
me fez dobrar os joelhos lentamente, tocando a terra vermelha com
eles. As lágrimas desceram como
pequenos rios que tinham finalmente conseguido romper uma barreira de
granito.
— Papai, o Marcelo
também está aqui.
Meu outro filho. O
adolescente. Quase trinta anos atrás. Meu coração. O ar. O ar
falta. Pulso acelerado. Hiperventilação. Calma, porra, calma! O
sangue. Boneco ensanguentado. Meu coração. Menino despedaçado.
Calma, cacete!
— Pai — falou
Marcelo. Era ele, sim. Prolongava a palavra, como se estivesse com
preguiça.
A esta altura, eu já
estava sentado. Arfava. Tentava sem sucesso secar as lágrimas,
aquelas que eu não tinha derramado no momento em que me desejaram
uma “boa vida”. As que eu não derramei em quase trinta anos.
— Pai... Não foi
sua culpa. Tudo bem, pai. Tá tudo bem.
— Meu filho...
eu... eu...
O coração. Quer
sair pela boca. A arritmia é tão forte, que a sinto batendo nos
tímpanos. Calma, porra!
— Pai...
— Que foi, filho —
a pergunta saiu sem sotaque falso.
— Mamãe tá aqui
também. Ela quer falar com você.
Não. Por favor.
Parem com isso. O caixão. O caixão descendo vagarosamente. Tão
devagar quanto a vida se esvaía dela, que tinha perdido tudo o que
considerava precioso. Eu também tinha perdido. Eu tinha falhado. Eu
tinha que ter dado a vida para salvar meus filhos. Tinha!
— Paulo, deixa
isso prá lá. Você ficou muito tempo vivendo assim, se escondendo
nessa tristeza toda. Vai, meu amor. É hora de você se livrar disso.
— M-mas...
— Deixa, meu amor!
Não ouviu o Marcelo falar? Não foi sua culpa!
O coração. As
vistas querem escurecer. Dores no fundo e alto da cabeça. Minha
pressão deve estar alta. Os tímpanos soando como címbalos em mãos
furiosas.
Alguém se vira para
mim e me pede para perguntar aos fogos como é a vida noutro lado.
Não consigo respirar. Sinto uma pontada no peito.
— Vem, meu amor.
Junte-se a nós.
— Vem, pai...
— Vem, meu
papaizinho querido!
Uma
dor forte no
peito.
As vistas se escurecem. Quem me viu, disse que um fogo diferente saiu
do meu corpo quando, já morto, tombei. Não era azulado como os
outros fogos-fátuos, mas amarelado. Não houve palavras. Só
liberdade e
felicidade.
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