Onze e quarenta.
Hora de almoçar. Levanto-me com meus amigos, decidindo ainda aonde
iremos. É sexta‑feira, dia de comer num restaurante melhor.
Economizamos a semana inteira para isso. Passo no banheiro, enquanto
meus amigos descem. Vão me esperar na portaria do prédio.
Meio-dia e vinte e
um. Paulo toma um tiro no peito e morre. Acorda se sentindo vivo,
ainda dentro do banco. Um homem alto e magro, vestindo preto e com um
capuz o chama. Diz-lhe que não é sua hora, e que ele não pode
estar ali. Dá-lhe uma missão, que ele acha estranha, mas aceita.
Onze e quarenta e
quatro. Cansei-me de esperar o elevador. Desço as escadas correndo,
usando o corrimão tubular para me ajudar a fazer as curvas... e não
me esborrachar na parede. Abro a porta corta-fogo, cumprimento o
porteiro, encontro meus amigos. Lembro-me de que não estou com
dinheiro, e aviso o pessoal de que preciso ir ao banco, a menos que
alguém queira pagar para mim. Todos riem com a piada, e me dizem
aonde vamos. Concordo, e digo que vou encontrá-los depois.
Meio-dia e
dezessete. O relógio de Paulo anda para trás, mas tudo parece
normal. Ele já está fora do banco, mas vê os ladrões entrarem
novamente. Sabe o que vai acontecer. Em pouco mais de três minutos,
ele tomará um tiro. Sua vida terminará. Mas ele agora tem uma
missão. Precisa cumpri-la. O homem de preto mandou, e mesmo sem
conseguir ver-lhe o rosto, ele parecia bem sério e determinado.
Melhor fazer o que ele manda.
Onze e quarenta e
oito. Estou na frente do banco, e me lembro que minha mulher está
com o cartão. Sorte que ela trabalha perto. Telefono para ela, e lhe
peço para me encontrar e devolvê-lo a mim. Ela se desculpa por ter
se esquecido de fazê-lo. Digo para ela, em tom de brincadeira, que
não faça mais isso, senão vai se ver comigo. Um carro-forte
encosta. Não gosto dos seguranças. Para mim, não têm preparo e
andam armados. Desaprovo meu próprio preconceito. Começo a andar na
direção do local encontrado.
Meio dia e treze. Um
lapso. Paulo parecia ter se perdido nos próprios pensamentos. Ele
precisa se concentrar e cumprir sua missão. Não pode ser
reconhecido. Olha a carteira: pelo menos, o dinheiro que tirou para
almoçar ainda está lá. Olha à sua volta: camelôs vendendo várias
quinquilharias, da copa ou não. Compra uma camiseta da seleção que
não sobreviverá à primeira lavada. Para na banca ao lado. Peruca
amarela cacheada, nariz de palhaço, “olha o óculos da copa”!
Verde e amarelo, as lentes são persianas.
— Quanto? Dez
reais? Caro, hein?
— É da Copa, meu
patrão. Faz o mó sucesso com a mulherada.
Paulo acena com a
mão esquerda, de modo a deixar a aliança de casamento bem visível.
O camelô não entende. Paulo suspira, e fala:
— Tá legal, e se
eu levar a peruca e o nariz de palhaço junto?
— OK, OK, meu
patrão, tudo por vinte merréis.
— Fechado. Toma
aí.
Pega a sacola com
aquelas coisas horríveis e sai.
Meio-dia e dois.
Encontro minha mulher no saguão do prédio onde trabalha. Pego o
cartão, apressado, dou meia-volta, mas ela segura o meu braço. Eu
me volto, querendo saber o que foi, e ela quer me dar um beijo de
despedida. Dou-lhe, e ela me solta. Eu começo a andar bem rápido.
Meus amigos já devem estar comendo, e eu, com fome. Paro. Volto. Dou
um abraço e um beijo na mulher, digo que a amo. Tenho de ir!
Meio-dia e sete.
Outro lapso. De peruca, nariz de palhaço e camisa da seleção por
cima da sua, Paulo fica à espreita. A qualquer hora, vai poder
cumprir sua missão. Vai ter de correr muito, mas sabe que o outro
não correrá mais que ele. Quando avistá-lo, trocará seus óculos
pelos “da copa”, para dificultar mais ainda o reconhecimento.
Meio-dia e seis.
Coloquei o cartão no bolso, junto com o celular. Não devia ter
feito isso: um cara com camisa de seleção, peruca amarela e nariz
de palhaço, usando um daqueles óculos esquisitos, rouba os dois do
meu bolso. Começo a correr atrás dele. Ninguém ajuda. As ruas por
onde corremos estão vazias; todo mundo aproveitando o feriado do
jogo. Todo mundo menos eu, correndo atrás de um ladrão.
Meio-dia e sete. Sem
lapsos. Paulo tem de fazer o outro se afastar do banco. Ele corre, o
outro está logo atrás. Mas não vai alcançá-lo. A menos que ele o
deixe. Entra num beco.
Meio-dia e sete.
Esse filhaça tinha que ter entrado num beco. Deve me levar para um
armadilha, deve ter outros esperando por ele. Vão me depenar, depois
de fazerem sabe lá Deus o que comigo. Vacilo um pouco, diminuo o
passo. Dane-se. Entro no beco e acelero. Ele para e se vira para mim,
mãos para o alto, segurando o cartão numa, e o celular noutra.
— Toma, toma. Não
quero nada seu, não. Pode levar — ele diz. Aquela voz não me era
estranha. Uma lembrança de infância, minha mãe me dizendo que a
gente não sabe como é a nossa voz até escutá-la.
Ouvi uma gravação
da minha voz pela primeira vez num daqueles gravadores portáteis,
que usavam fita cassete. Não a reconheci. Não podia ser eu. Gravei
e ouvi minha voz mais umas duas vezes, até me convencer de que
aquelas palavras gravadas só podiam ter sido ditas por mim.
Dou uma chave de
braço no ladrão, no lado direito. Ele não reage. Sinto dor no
mesmo ombro, e quando afrouxo o dele, alívio.
— Foi me roubar,
seu babaca? Seu merda! Vou te levar pra polícia!
— Acho que não —
ele e aquela voz da minha infância — Seu nome é Paulo, sua esposa
se chama Andréa, e você tem dois fihos: Eduardo; e André. Não é?
Aquilo me assombra.
Um terceiro homem entra no beco. Alto, magro, de preto, capuz
vestido. Rosto que não consigo ver direito. Parece uma fotografia
borrada. Mãos nos bolsos do casaco. Ele para próximo a nós e me
manda soltar o ladrão.
— E se eu não
soltar esse babaca? Tu vai fazer o quê — pergunto, em alto e bom
“carioquês”, destruindo as concordâncias. Aperto a chave de
braço, meu ombro quase estoura. Afrouxo-a.
— Largue-o.
Não quero, mas
obedeço. Meu ombro agradece. O ladrão se vira para o homem alto,
como se para lhe cumprimentar, e depois me encara. Tira o nariz de
palhaço, a peruca e os óculos da copa. Coloca os que tinha
guardado. Pega meu cartão e o celular e os coloca no bolso de onde
os havia roubado.
Estou paralisado.
Totalmente sem ação, ao me ver devolvendo as coisas que eu mesmo
roubei de mim. A cena é, por falta de palavras, inacreditável.
— Não vá ao
banco — ele me diz — pelo menos, não àquele. Você vai morrer
lá. Eu morri. Ele — e apontou para o homem de preto — foi quem
me permitiu estar aqui e dizer para você... ou eu, sei lá! Que não
fosse lá. Não é minha hora. Sua. Porra, que confusão!
Nem sei o que dizer.
O homem alto se aproxima, fazendo um sinal para que o outro se
afastasse de nós. Ele me pergunta:
— Preciso lhe
dizer o que vai acontecer se você revelar isso para alguém?
— Isso o quê?
Aconteceu alguma coisa?
— Bom garoto — e
parece que ri. Não sei, seu rosto é borrado.
Ele tira uma das
mãos do casaco; ela é raquítica, horrivelmente magra. Toca a testa
do outro, e ele desaparece. Não vou ao banco. Vejo um restaurante
ali, próximo. Pergunto se aceita cartão. Aceita. Entro e almoço. É
difícil almoçar esbaforido e desgrenhado, mas eu tento.
Meio-dia e cinquenta
e três. Encontro com meus colegas, e eles me perguntam o que
aconteceu. Só digo que tive uns probleminhas no banco e acabei
encontrando um colega antres do almoço. Fico em frente ao
computador, mas não trabalho. Não consigo. Repasso mentalmente todo
o ocorrido, procurando em vão uma resposta científica, plausível,
coerente, para aquilo tudo. Obviamente, não a encontro.
Dezessete e catorze.
Entro em casa, e ponho a mochila e a sacola no chão. A mulher está
nos fundos do apartamento. Vou à cozinha, beber água. Ouço os
passos dela se aproximando. Barulho da sacola de plástico.
— Paulo, por que
você comprou nariz de palhaço, peruca, camiseta e esses óculos
ridículos?
Muito bom, melhorando mais e mais. Parabéns. Continue assim. Gosto deste estilo de futuro-passado-presente.
ResponderExcluirObrigado, Dani! Recomende!
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