Centro
do Rio. Meio-dia e quinze. A Cidade Maravilhosa, em polvorosa, com as
pessoas se dirigindo e saindo dos restaurantes. O rush
de pedestres na hora do almoço.
Paulo
sai do restaurante, decidido
a pagar contas primeiro. Vai
atravessar a Primeiro
de Março, no sinal da rua do Ouvidor. Pelo menos, não demora tanto
a fechar. Depois vai
comprar
os descartáveis de plástico para a festa de logo mais.
Gostava
das festividades e congraçamentos do escritório. Uma
chance de se desestressar, conhecer um pouco mais os colegas —
e as colegas —
de trabalho. Paulo
sente um pouco de vergonha por
misturar negócios com prazer; espanta-se
com o que vê do outro lado da rua.
Uma
mulher linda, loura, de olhos azuis e cabelos cacheados, num vestido
revelador.
E ela não usa nada por baixo. Paulo se pergunta como aquela mulher
não foi presa, e também por que ninguém olha para ela. Até que
entende: um homem chega para atravessar a rua do outro lado, e para
onde ela está.
Paulo
arregala os olhos. Esfrega-os. Pisca. Não há mulher alguma.
“Preciso parar de dormir tarde e acordar cedo”, pensou. Sabia dos
efeitos da privação do sono, e que alucinações estavam entre os
sintomas. Preferiu ignorar tudo.
Atravessou.
Na rua do Ouvidor, um senhor pregava, dizendo que um abismo se
abriria, e que todos os pecadores seriam arrastados para o inferno.
“Insistente, esse cara. Não vê que todos estão ignorando o que
diz”, Paulo imaginou, apenas para ser interrompido pelo início da
cantoria do pregador. Um hino, provavelmente evangélico. Paulo se
deu conta de seu preconceito contra aquela religião, e
inconscientemente pediu desculpas.
Estava
para cruzar a rua do Carmo, quando viu outra mulher, linda. Negra,
com os cabelos crespos e curtos, os olhos negros penetrantes, e o
mesmo vestido revelador. Nada por baixo, a não ser um lindo corpo
feminino. Paulo parou, e foi imediatamente abalroado pelo pedestre
que vinha atrás. Pediu desculpas, e se encostou na parede de um dos
prédios, sujando sua camisa social branca.
A
mulher olhava diretamente para ele. Paulo desviou o olhar,
envergonhado por encará-la daquele jeito. Sabia que sua atitude não
era respeitosa. Olhou para baixo, tentando desesperadamente não
olhar para aquelas formas perfeitas, aquela beleza intensa. Não
aguentou: olhou novamente, apenas para ver um casal atravessá-la.
Mas ela continuava lá, e o encarava tão fixamente, que ele ficou
desconcertado.
A
cantoria do pregador estava ainda mais alta. Paulo, entretanto, só
conseguia ouvir aquelas palavras: um abismo vai se abrir, e os
pecadores vão cair nele. Olhou na direção do homem que cantava, e
se voltou para a mulher. Sumiu.
Paulo
sacudiu a cabeça, esfregou os olhos e a testa, e soltou um longo
suspiro. Entrou no banco, desceu as escadas, pegou senha. Sentou-se.
Passava um desenho de animação stop-and-go
na televisão. Coisa de criança.
Começou
a olhar em volta, até que viu, no canto próximo às escadas, outra
mulher. Oriental. Cabelos negros, olhos puxados. Estava séria. Paulo
nem percebeu tanto o corpo escultural por baixo daquele vestido
translúcido, quase transparente, tal era o olhar: misto de
preocupação e reprovação. Envergonhado, baixou a cabeça para não
admirar aquele ser sublime.
Um
aperto nas têmporas o fez levantar os olhos e mirar aquela bela
mulher. “Que japonesa gostosa”, disse para si, tentando baixar os
olhos, reprovando seus próprios pensamentos. Não conseguiu: sua
cabeça foi virada na direção daquela beleza angelical, e a viu
fazer um sinal, batendo levemente com a ponta do dedo indicador no
ouvido.
Paulo
ouviu um apito tão alto, que se encolheu. Os dois outros clientes
que esperavam a vez olharam para ele, assustados. O vigia do banco
deslizou sorrateiramente a mão de dentro do colete para o coldre.
Paulo fez de conta que estava com tosse, e se levantou para pegar um
copo d'água.
Ela
continuava lá, fazendo o sinal para que ouvisse algo. O apito
diminuiu rapidamente, até ser substituído pelas palavras do
pregador. “Já sei, já sei, um abismo vai se abrir e os pecadores
vão cair nele”, respondeu
mentalmente. Já sabia que ninguém mais via aquelas mulheres, a não
ser ele mesmo.
A
linda oriental apontou para ele, e depois para as escadas. Paulo
pegou a conta e mostrou a ela, mas o papel se incendiou e virou
cinzas, dissolvendo-se com fagulhas no ar. Ninguém viu. Ele achou
melhor cumprir o que ela mandava. Subiu.
“Preciso
avisar meus amigos que ficaram no restaurante”. Começou a fazer
rapidamente o caminho de volta, e já estava a menos de dez metros do
pregador, quando viu mais uma daquelas mulheres:
a pele alva se misturava ao
vestido que nada escondia; longos cabelos negros arrematavam um forte
contraste.
Ela
lhe fez um gesto para que parasse, e o paralisou. Paulo só conseguia
mexer os olhos e respirar. Pensava em como tudo aquilo parecia ser um
prenúncio de loucura, em quão ilógica era aquela hora de almoço.
Nada mais fazia sentido.
O
lindo anjo esticou o braço para frente, apontou
o indicador para baixo e o girou. Paulo sentiu seu corpo dar uma meia
volta, ficando de costas para o pregador. Tentou se virar, mas nada.
Quando
finalmente recobrou os movimentos, um estrondo enorme o ensurdeceu; o
deslocamento de ar o jogou longe. Ele se chocou contra a estrutura
metálica dos andaimes de um prédio em reforma, mas conseguiu se
agarrar a eles. Tentava desesperadamente recobrar o equilíbrio,
enquanto seus ouvidos apitavam de tal forma, que ele não conseguia
ouvir os próprios pensamentos.
Firmou
o pé direito numa das vigas, e começou a descer. Olhou para o
pregador, e o viu pendurado na borda de um enorme buraco. Água e
esgoto saíam dele, emporcalhando tudo à sua volta. Ouviam-se
pipocos esporádicos, até que outra explosão ocorreu, com uma
labareda subindo a quase dez metros.
“Pegou
a tubulação de gás”, Paulo pensou, enquanto descia. O pregador,
pendurado e queimado, grita por socorro, alternando urros de dor.
Paulo começa a correr em seu auxílio. Partes das fachadas dos
prédios próximos caem, passando a centímetros do pobre homem
pendurado.
As
pessoas à volta começaram a correr, quando um enorme tentáculo
negro emergiu do buraco, tateando suas bordas. Paulo já estava quase
chegando ao homem que desesperadamente se agarrava à beirada
da cratera, mas as quatro mulheres apareceram à sua frente, formadas
lado a lado, impedindo sua passagem.
— Por
favor, deixa eu ajudar aquele cara —
gritou para as belas impassíveis. Ao
tocar no pregador, o
tentáculo se levantou, abrindo as ventosas, e se abateu sobre ele,
como uma ave de rapina faminta. Paulo
tentou passar pelas mulheres, somente
para ser paralisado de novo.
O
pregador
se agarrou com todas as forças à borda da cratera, mas o tentáculo
se enroscou nele. Ouviu-se um forte estalo e um rápido grito de dor
quando a coluna do homem foi partida ao meio, e ele começou
a ser arrastado
para dentro. Guardas municipais, até então paralisados pelo medo,
fugiram.
Uma viatura da polícia encostou. Policiais
desceram e atiraram,
mas apenas
um
urro veio do fundo daquela
fossa, como
resposta.
Um
cheiro fétido exalou quando o pobre pregador desapareceu na cratera.
Juntou-se
ao do esgoto, dando a Paulo ânsias de vômito.
Um
caminhão de Fuzileiros Navais veio rapidamente, na contramão da
avenida Primeiro de Março. Freou bruscamente em frente à rua do
Ouvidor. Os Fuzileiros Navais desceram rapidamente e cercaram o
buraco. Um deles jogou o almoço fora, quando sentiu aquele cheiro. O
Tenente comandante do pelotão advertiu-o, mandando que ele deixasse
de ser fresco... e vomitou também. Recompuseram-se e continuaram,
como se nada tivesse acontecido.
Paulo
assistia àquilo tudo, paralisado. As quatro mulheres ainda lhe
impediam a passagem.
— Por
que tão me torturando, me fazendo ver isso tudo? Deixem eu ir
embora, e salvar minha vida!
Elas
apenas o olharam. Várias imagens desconexas irromperam na mente de
Paulo, como se fosse um filme cortado com cenas aleatórias. Futuro,
presente e passado; sem ordem, sem sentido, num emaranhado de cenas
desconexas. Paulo se sentiu tonto, sentindo o mundo girar, e
desfaleceu.
Apenas
uma mulher o observava quando abriu os olhos. Ela usava o mesmo
vestido semitransparente das outras, que deixava entrever até seus
pelos. Seus
cabelos eram brancos.
Igualmente linda, sensual. Causava a Paulo o mesmo turbilhão se
sentimentos paradoxais de desejo e vergonha, tesão e autodisciplina.
Paulo
se sentou, tentando desviar o olhar da região pubiana daquele anjo
em forma de mulher. Olhou à sua volta, e não havia nada. Apenas um
vazio branco, que não lhe permitia saber se estavam
num recinto fechado, ou num espaço amplo. Não conseguia medir
mentalmente as distâncias, não havia pontos de referência. O
próprio chão era difuso, indefinido, confuso.
— Onde
estou — perguntou,
se dando conta do quanto aquela
pergunta era clichê. A
mulher, como resposta, lhe estendeu a mão. Puxou-o como se ele fosse
uma pequena almofada, quase o lançando para cima. Paulo
se assustou com a rapidez em que se viu de pé.
— Quanto
tempo fiquei desmaiado?
Ela
apenas estendeu seu braço esquerdo para o lado, e uma tela se abriu
em pleno ar, mostrando uma visão superior oblíqua da cratera. Já
estava escurecendo, e à volta, policiais, fuzileiros navais e até
soldados da Força Aérea combatiam aquela criatura. Alguns mortos
espalhados à volta, e o incólume tentáculo a desafiar todas as
táticas e munições empregadas.
Um
homem se aproximou, pedindo que parassem, pois se tratava de uma
espécie nova, e aquele poderia
ser o único indivíduo. Era preciso preservá-lo, tinham de parar
com o ataque! Foi partido ao meio e levado para o fundo do buraco
pela criatura.
Paulo
ouvia a tudo que se passava: os gritos; os tiros; e os horripilantes
urros daquele monstro. Vez por outra, conseguia pegar um dos
combatentes e o arremessava contra os prédios, estraçalhando-o com
o choque. Ou então, agarrava um deles e o
quebrava ao meio, o som alto dos ossos e tendões se partindo. Não
dava tempo para a vítima gritar de dor.
No
meio de tudo aquilo, um dos homens gritou várias vezes para os
outros. Um helicóptero Esquilo da Força Aérea, armado com uma
metralhadora, chegou e pairou sobre o cruzamento da Ouvidor com a
Primeiro de Março. Os homens se afastaram, correndo o quanto podiam.
O
helicóptero começou a atirar no monstro, apenas para fazê-lo se
contorcer e emitir gritos de dor. Atirou tudo o que tinha, empurrando
o tentáculo para
dentro da cratera. Os homens que estavam no chão vibraram, com os
braços para o alto, e alguns fuzileiros jogaram granadas. Elas
explodiram, e todos deram
gritos de vitória. Mas a alegria durou pouco...
Num
ataque que mais lembrava uma cobra, o tentáculo segurou o esqui do
helicóptero. O piloto puxou a
alavanca do coletivo, para
tentar ganhar
altitude e se soltar.
O monstro o puxou, e o arremessou contra a igreja de Santa Cruz dos
Militares, causando uma tremenda explosão. O rotor de cauda saiu
rodopiando numa dança desengonçada, indo se cravar numa banca de
jornal, partindo-a ao meio.
Os
militares não podiam acreditar. Ignoravam que o monstro pudesse
alcançar tão longe. Paulo afastou os olhos para baixo, vendo tanta
morte e destruição causada por algo inimaginável. A mulher
angelical o tocou levemente na fronte, e as palavras “sacrifício”
e “missão” ecoaram em sua cabeça.
— O
que quer que eu faça —
perguntou, apenas para se
ver novamente naquela cena de guerra, com as quatro mulheres à sua
frente. Tudo estava parado, ninguém se mexia. Até as chamas do
helicóptero caído estavam paradas.
O
anjo oriental deu um passou à frente. As outras três colocaram suas
mãos direitas nos ombros e na cabeça dela.
Ondas de luz começaram a se propagar pelos braços das três
mulheres de trás daquela linda oriental, fazendo-a brilhar, mais e
mais. Paulo protegeu os olhos. Ela desnudou os seios e pegou a mão
dele, convidando-o a prová-los. Paulo o fez, a princípio com uma
certa relutância, mas depois, com um prazer puro, sem erotismo. Como
se fosse amor.
Paulo
se saciou, sentindo-se amado e poderoso. A oriental se vestiu
novamente, e todos os quatro anjos lhe abriram passagem. As chamas
crepitaram, os gritos voltaram, os homens continuaram a correr. Paulo
chegou à borda do buraco.
O monstro se virou para ele e abriu suas ventosas, mas parou.
— Vem,
porra! Tá com medo? —
gritou,
a plenos pulmões.
Sentiu
apenas quando foi rasgado ao meio. A dor foi rápida, libertadora,
sublime. Seu sangue escorreu como uma cascata vermelha sobre
a pele do tentáculo,
penetrando-a, cortando-a, queimando-a. Paulo viu o próprio corpo
dilacerado ser arremessado pelo monstro, mas seu sangue continuou a
matá-lo,
pois
agora emitia gritos de dor que gelavam o espírito de
quem quer que os ouvisse.
Por
fim, bolhas começaram a surgir por onde o sangue de Paulo tinha
escorrido e penetrado. Cresceram ao tamanho de bexigas e explodiram,
despedaçando a criatura, espalhando
pedaços pelos prédios e
ruas. Paulo não se mexeu.
Os
restos do tentáculo fumegavam e murchavam, derretendo e sumindo. Um
dos prédios, com a estrutura fragilizada por causa do enorme buraco,
desabou dentro dele, cobrindo-o. Paulo se virou, e as quatro mulheres
sumiram. Apenas o anjo de cabelos brancos estava lá.
— O
que foi tudo isso? De onde veio essa
coisa? Por quê?
Sua
resposta foi a mão daquela mulher maravilhosa. Segurou-a, e caminhou
com ela para outra vida. Monstros
que se danem.