— Como
foi que o senhor conseguiu esses cortes nos braços mesmo — o
médico do navio perguntou. Estávamos atracados porto de Itaqui, no
Maranhão, desde o dia 12. Era agosto de 1997, dia 14, sexta-feira, e
eu ainda tinha dificuldades para acreditar no que tinha acontecido na
noite anterior.
— Doc
— apelido de qualquer médico da Marinha —, alguém me atingiu
com algo que parecia ser uma chibata.
— O
quê?
— Um
chicote, Doc.
— Chicote,
Tenente — perguntou Doc, prolongando as sílabas, estampando a
descrença no seu rosto. Eu não queria falar sobre aquilo. Ninguém
acreditaria, mesmo.
— Doc,
você crê em Deus?
— Por
que, Tenente?
— Só
lhe perguntei. Acredita?
— Eu
fui criado numa família muito católica. Cresci acreditando em Deus;
fiz catequese e Primeira Comunhão. Até crisma! Mas... Depois que
entrei na faculdade de Medicina, não vi razão nenhuma para
acreditar na existência de um ser maravilhoso, sobrenatural. O que
salva vidas num hospital é o que eu sei, o que eu estudei, e o que
eu tenho à disposição para tratar meus pacientes.
— Muito
bom, Doc. Eu já creio que Deus guie sua mão.
— Então,
para que eu estudei? Se Deus pode guiar minha mão mesmo...
— Veja,
Doc: por que você trata dos doentes?
— Porque
sou médico.
— E
por que você não manobra com o navio? Por que quem faz isso sou eu?
— Ué,
Tenente... porque o senhor foi treinado para isso.
— Exatamente,
Doc. Eu acredito que Deus me guia, mas eu tenho que, pelo menos,
saber o que fazer, para que Ele possa me inspirar. Se eu tentasse
fazer algo para salvar uma vida, num tratamento médico complexo, eu
seria totalmente incapaz. Nem Deus poderia me dar a graça de salvar
uma vida assim.
— Pois
é, Tenente. Eu até acreditava nisso, até que perdi meu primeiro
paciente. Morreu nos meus braços, mesmo com tudo o que eu fiz e com
todas as orações que fiz. Não faltou fervor e fé da minha parte, e
o que o seu Deus fez? Tirou a vida do meu paciente!
Calei-me.
Não adiantaria discutir com ele. Mas o que tinha acontecido estava
além do que qualquer ciência explicava. Se bem que essa pequena
discussão tinha sido engendrada por mim mesmo, para desviar a
atenção do chicote que tinha me causado os ferimentos.
Voltei
para o meu camarote. Quando entrei, meu amigo de turma se levantou,
num sobressalto. Lívido, ele se sentou, colocando a cabeça entre as
mãos, sacudindo-a. Ele teve a sorte de não ter sido atingido pelo
que tínhamos visto.
— Porra,
Paulo, o que a gente vai fazer?
— Como
assim, Zé — perguntei — O que houve?
Ele
apontou para o canto do camarote. Um cobertor amarfanhado estava
jogado lá. Puxei, e quase caí para trás: um fêmur.
— Zé,
que porra é essa — perguntei, tentando manter minha voz baixa,
senão o Comandante e o Imediato escutariam — E cadê aquela merda
daquela vela que aquela mulher deu pra gente?
— Essa
merda desse osso é a vela, porra! Cacete, Paulo, como é que vão
ficar nossas carreiras quando descobrirem um osso humano velho aqui
com a gente? Olha só, tem até terra nele! E parece aquela terra de
cemitério!
Peguei
minha mochila, joguei o que estava dentro no armário, e a passei
para o Zé. Falei para ele fazer um rolo com o cobertor em volta do
osso e colocá-lo dentro dela. Virei-me em direção à porta, mas Zé
se levantou e me segurou.
— Porra,
Paulo. Que que tu vai fazer?
— Falar
com o Doc.
— Tá
maluco, porra? Quer que todo mundo saiba?
— Zé,
a gente não tem certeza de que esse osso é humano. O Doc vai saber
identificar.
Cinco
minutos depois, o Doc entrava comigo no camarote. Prestou continência
ao Zé, que olhou para ele, em prantos. Doc me fitou, com cara de
quem não entendia nada.
Fiz
um sinal para o Zé para que chegasse para o lado, para eu poder me
sentar na cama, ao lado dele. Mostrei a cadeira para o Doc, e ele se
sentou. Comecei a falar:
— Doc,
precisamos da sua ajuda.
— Afirmativo,
Tenente!
— Doc,
olhe só: pode me tratar como um paciente. Aliás, eu e o Tenente
aqui. Você sabe que eu e ele somos da mesma turma desde o Colégio
Naval, né? São catorze anos de amizade, já — Nem sei por que
falei aquilo. Não tinha nada a ver com a conversa. Não importa, as
palavras morreram nas anteparas do camarote.
— Precisamos
do seu conhecimento, mas também do seu sigilo profissional —
continuei — Posso contar com você?
— Pode,
Tenente, mas do que se trata?
— Lembra-se
da conversa que tivemos sobre Deus?
— O
que isso tem a ver?
— Tem
a ver com o que aconteceu ont...
— Paulo
— Zé quase gritou, e segurou nas bandagens do meu braço, me
interrompendo. Respondi-lhe com uma careta e um gemido de dor. Ele me
soltou imediatamente, lembrando-se de como eu tinha conseguido o
ferimento.
— Doc,
tente manter uma mente aberta, está bem? Lembra-se de que saímos
ontem?
— Sim,
senhor. O senhor até me contou a lenda do ônibus fantasma de Itaqui
— disse, rindo, porque ninguém do navio tinha visto o ônibus que
fazia a ligação Itaqui-São Luís. Ou ele tinha acabado de sair, ou
ainda demoraria para chegar... E o espaço entre os ônibus era de
duas horas, mas não era regular. Podia variar muito mais.
— Tudo
bem, Doc. Lembra-se de que rachamos o táxi para o centro histórico,
e que paramos numa sorveteria para experimentarmos...
— Sorvete
de nata-goiaba! Sim, Tenente, mas é daí?
— Bom,
você se lembra da estória que a dona contou pra gente?
— Da
Rainha do Maranhão? Ana... alguma coisa com “J”...
— Ana
Jansen — completei. Ele riu. Peguntei-lhe se queria saber como eu
tinha arrumado o ferimento. Ele disse que sim. Zé se largou no resto
de espaço que tinha na cama. Olhei para ele, e me voltei para o
jovem médico.
— Doc,
eu sei que sou um dos caras que mais “piranha” aqui.
— Mais
o quê, Tenente?
— Mais
“piranha” os outros. Que mais faz gozações e piadas com os
outros. Mas lhe asseguro, pela felicidade dos meus pais, e lhe dou
minha palavra de honra como Oficial, que o que vou lhe contar é
verdade.
E
comecei a contar a estória do dia anterior. De como saímos da
sorveteria e fomos para um baile no centro histórico, onde ouvimos e
dançamos reggae até cansar, na Jamaica Brasileira. Claro, partimos
para cima das maranhenses, e todos tínhamos encontros para o dia
seguinte. O Doc, com mais sorte, passou a noite com a moça que
arranjou.
Era
a madrugada de quinta para sexta. Saímos do baile e fomos caminhando
pela rua do Norte, até alcançarmos a Praça da Saudade. Achamos
estranho que todos vinham na direção contrária, mas ninguém no
sentido em que caminhávamos.
Zé
falou para que dobrássemos à esquerda, entrando na rua Euclides da
Cunha, mas eu falei que tínhamos de andar mais um pouco e dobrar à
direita, na Avenida do Gavião. Ele insistiu, e eu concordei. E nunca
me arrependi tanto.
A
rua estava deserta. Nenhuma alma viva além de nós dois.
Interessante escolha de palavras: alma viva. Andávamos
beirando o cemitério de São Pantaleão, mais conhecido como
cemitério do Gavião. Contornávamos a Praça da Saudade, mais
conhecida como praça do cemitério, quando vimos os portões do
cemitério se abrirem.
Zé
me fez parar. Sinal de respeito pelo féretro que vinha. Aquiesci,
obedeci, e então me dei conta: uma procissão fúnebre às duas da
manhã? Não tive tempo de contestá-lo: um tropel de cavalos foi
aumentado, e vimos uma grande carruagem sendo puxada por quatro
corcéis. Dois cocheiros montados na boleia a conduziam.
Conforme
se aproximaram, pudemos ver uma cena pavorosa: dos quatro cavalos,
apenas dois tinham cabeça. O sangue escorria vagarosamente pelos
corpos cobertos de cortes abertos.
A
carruagem diminuiu, parando em frente a nós. Moscas pousavam e
voavam das feridas, e algumas delas tinham larvas. O cheiro horroroso
da carne em decomposição fez o arroz de cuxá que tinha comido vir
à minha garganta.
Um
dos cocheiros tinha sido decapitado. O outro tinha a goela cortada, e
sua camisa rota estava vermelha e molhada de sangue. Ambos pareciam
escravos.
Zé
fez menção de correr, mas o cocheiro degolado pegou o chicote. Deu
uma chicotada no Zé e eu, por reflexo, me pus na frente,
protegendo-me com meus braços cruzados no alto. Dois golpes
laceraram meus membros e eu me encolhi de dor, caindo no chão. Zé
ficou paralisado.
A
carruagem era negra, desbotada. A iluminação da rua não deixava
ver muitos detalhes. Todas as arestas eram cobertas por metal
dourado, que estava descascado e enferrujado. Dentro dela, uma
estranha luz começou a brilhar.
Zé
me ajudou a levantar. Uma voz feminina e envelhecida nos chamou, e
nos aproximamos. Um rosto descarnado, com vestes nobres, porém
rasgadas, apareceu na janela. Assustamo-nos. O medo nos fez pensar em
correr, mas o cocheiro já nos esperava com o chicote. Lembrei-me da
dor que senti, os braços ainda ardendo, meu sangue pingando das
mãos.
A
mulher dentro da cabine fez um sinal para que nos acercássemos. Uma
força nos empurrou para ela, malgrado nossa resistência. Resistir
era, no mínimo, fútil.
Ela
entregou uma vela ao Zé, que a recebeu com enorme relutância. Uma
vela negra, acesa. Era a luz dentro da cabina. Aquele estranho vulto
sumiu na escuridão do interior da carruagem.
O
trote dos cavalos recomeçou. A carruagem fez uma meia volta, e
entrou no cemitério do Gavião. Tirei as meias e fiz uns curativos
de fortuna. Tivemos um problema sério para arrumar um taxista que
quisesse nos trazer de volta ao porto, especialmente por causa das
meias ensanguentadas nos braços. Chegamos ao navio quase às quatro
da manhã.
Doc
me olhava, espantado. Zé tinha se sentado novamente. Perguntei-lhe:
— E
aí, Doc? O que acha disso tudo?
Ele
não respondeu de imediato. Suspirou. Depois riu e falou:
— Tenente,
o senhor está querendo me dar trote, né? Aposto que compraram uma
vela preta e agora vão mostrar ela pra mim.
— Na
verdade, tentamos jogar a vela fora. Não conseguimos. Não podíamos
largá-la, só passá-la de um para o outro e vice-versa — disse,
apontando alternadamente entre Zé e mim mesmo —. Tentamos
apagá-la, mas não pudemos. Nos faltava ar. O contramestre de
serviço achou muito estranho quando entramos no navio daquele jeito,
e segurando uma vela preta acesa! Zé se fingiu de bêbado e eu o
ajudei a andar. Passei pelo pessoal de serviço e falei “nem
queiram saber”, rindo. Peguei um pires na copa e fixei a vela nele
e pus no canto do camarote. O resto você sabe.
— E
por que me chamaram aqui?
— Lembra-se
da lenda que a mulher da sorveteria contou?
Ele
disse que sim. Perguntei-lhe se não faltava nenhum detalhe. Ele me
respondeu que a mulher tinha falado que a vela, pela manhã, virava
um osso.
Olhei
para Zé. Ele pegou a mochila, e tirou o cobertor de dentro dela.
Desenrolou-o e passou o fêmur ao Doc, que arregalou os olhos de tal
forma, que pensei que fossem saltar das órbitas.
— Preciso
que me diga se isso é realmente um fêmur humano — disse, com uma
calma que me causou estranheza. Doc titubeou, mas confirmou —
Preciso também que não comente isso com ninguém.
— E
o que pretende fazer?
— Vou
ao cemitério. O túmulo dela fica lá. Vou deixar o osso nele.
— Tenente,
o senhor está falando sério mesmo?
— Sim.
Zé?
— Que
é?
— Você
vai à igreja matriz. Já que é católico, e eu não, você vai
acompanhar a missa, e rezar com toda a sua fé pela alma dela.
— Por
quê?
— Pelo
que sabemos, Ana foi uma mulher que sofreu muito, mas que estava à
frente de seu tempo. Ela não tinha escrúpulos, quando se tratava de
dinheiro e poder. Se o osso é dela, gostaria que ela viesse fazer
uma visita para pegá-lo de volta? Ou, sei lá: se ela nos deu uma
vela... é... osso, por que não quereria algo de volta?
— E
você, Doc, bico calado, safo?
— Pode
deixar, Tenente!
Saí
do cemitério e me encontrei com o Zé em frente à sorveteria.
Somente um sorvete de nata-goiaba para nos acalmar.
— Quase
hora do rancho. Onde vamos almoçar?
— Tô
a fim de mais um arroz de cuxá. Vai?
— Agora.
Tá pagando?
— Nem
sonhando, camarada. Nem sonhando...
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