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sexta-feira, 4 de julho de 2014

Novo conto: Carruagem

 — Como foi que o senhor conseguiu esses cortes nos braços mesmo — o médico do navio perguntou. Estávamos atracados porto de Itaqui, no Maranhão, desde o dia 12. Era agosto de 1997, dia 14, sexta-feira, e eu ainda tinha dificuldades para acreditar no que tinha acontecido na noite anterior.
Doc — apelido de qualquer médico da Marinha —, alguém me atingiu com algo que parecia ser uma chibata.
O quê?
Um chicote, Doc.
Chicote, Tenente — perguntou Doc, prolongando as sílabas, estampando a descrença no seu rosto. Eu não queria falar sobre aquilo. Ninguém acreditaria, mesmo.
Doc, você crê em Deus?
Por que, Tenente?
Só lhe perguntei. Acredita?
Eu fui criado numa família muito católica. Cresci acreditando em Deus; fiz catequese e Primeira Comunhão. Até crisma! Mas... Depois que entrei na faculdade de Medicina, não vi razão nenhuma para acreditar na existência de um ser maravilhoso, sobrenatural. O que salva vidas num hospital é o que eu sei, o que eu estudei, e o que eu tenho à disposição para tratar meus pacientes.
Muito bom, Doc. Eu já creio que Deus guie sua mão.
Então, para que eu estudei? Se Deus pode guiar minha mão mesmo...
Veja, Doc: por que você trata dos doentes?
Porque sou médico.
E por que você não manobra com o navio? Por que quem faz isso sou eu?
Ué, Tenente... porque o senhor foi treinado para isso.
Exatamente, Doc. Eu acredito que Deus me guia, mas eu tenho que, pelo menos, saber o que fazer, para que Ele possa me inspirar. Se eu tentasse fazer algo para salvar uma vida, num tratamento médico complexo, eu seria totalmente incapaz. Nem Deus poderia me dar a graça de salvar uma vida assim.
Pois é, Tenente. Eu até acreditava nisso, até que perdi meu primeiro paciente. Morreu nos meus braços, mesmo com tudo o que eu fiz e com todas as orações que fiz. Não faltou fervor e fé da minha parte, e o que o seu Deus fez? Tirou a vida do meu paciente!
Calei-me. Não adiantaria discutir com ele. Mas o que tinha acontecido estava além do que qualquer ciência explicava. Se bem que essa pequena discussão tinha sido engendrada por mim mesmo, para desviar a atenção do chicote que tinha me causado os ferimentos.
Voltei para o meu camarote. Quando entrei, meu amigo de turma se levantou, num sobressalto. Lívido, ele se sentou, colocando a cabeça entre as mãos, sacudindo-a. Ele teve a sorte de não ter sido atingido pelo que tínhamos visto.
Porra, Paulo, o que a gente vai fazer?
Como assim, Zé — perguntei — O que houve?
Ele apontou para o canto do camarote. Um cobertor amarfanhado estava jogado lá. Puxei, e quase caí para trás: um fêmur.
Zé, que porra é essa — perguntei, tentando manter minha voz baixa, senão o Comandante e o Imediato escutariam — E cadê aquela merda daquela vela que aquela mulher deu pra gente?
Essa merda desse osso é a vela, porra! Cacete, Paulo, como é que vão ficar nossas carreiras quando descobrirem um osso humano velho aqui com a gente? Olha só, tem até terra nele! E parece aquela terra de cemitério!
Peguei minha mochila, joguei o que estava dentro no armário, e a passei para o Zé. Falei para ele fazer um rolo com o cobertor em volta do osso e colocá-lo dentro dela. Virei-me em direção à porta, mas Zé se levantou e me segurou.
Porra, Paulo. Que que tu vai fazer?
Falar com o Doc.
Tá maluco, porra? Quer que todo mundo saiba?
Zé, a gente não tem certeza de que esse osso é humano. O Doc vai saber identificar.
Cinco minutos depois, o Doc entrava comigo no camarote. Prestou continência ao Zé, que olhou para ele, em prantos. Doc me fitou, com cara de quem não entendia nada.
Fiz um sinal para o Zé para que chegasse para o lado, para eu poder me sentar na cama, ao lado dele. Mostrei a cadeira para o Doc, e ele se sentou. Comecei a falar:
Doc, precisamos da sua ajuda.
Afirmativo, Tenente!
Doc, olhe só: pode me tratar como um paciente. Aliás, eu e o Tenente aqui. Você sabe que eu e ele somos da mesma turma desde o Colégio Naval, né? São catorze anos de amizade, já — Nem sei por que falei aquilo. Não tinha nada a ver com a conversa. Não importa, as palavras morreram nas anteparas do camarote.
Precisamos do seu conhecimento, mas também do seu sigilo profissional — continuei — Posso contar com você?
Pode, Tenente, mas do que se trata?
Lembra-se da conversa que tivemos sobre Deus?
O que isso tem a ver?
Tem a ver com o que aconteceu ont...
Paulo — Zé quase gritou, e segurou nas bandagens do meu braço, me interrompendo. Respondi-lhe com uma careta e um gemido de dor. Ele me soltou imediatamente, lembrando-se de como eu tinha conseguido o ferimento.
Doc, tente manter uma mente aberta, está bem? Lembra-se de que saímos ontem?
Sim, senhor. O senhor até me contou a lenda do ônibus fantasma de Itaqui — disse, rindo, porque ninguém do navio tinha visto o ônibus que fazia a ligação Itaqui-São Luís. Ou ele tinha acabado de sair, ou ainda demoraria para chegar... E o espaço entre os ônibus era de duas horas, mas não era regular. Podia variar muito mais.
Tudo bem, Doc. Lembra-se de que rachamos o táxi para o centro histórico, e que paramos numa sorveteria para experimentarmos...
Sorvete de nata-goiaba! Sim, Tenente, mas é daí?
Bom, você se lembra da estória que a dona contou pra gente?
Da Rainha do Maranhão? Ana... alguma coisa com “J”...
Ana Jansen — completei. Ele riu. Peguntei-lhe se queria saber como eu tinha arrumado o ferimento. Ele disse que sim. Zé se largou no resto de espaço que tinha na cama. Olhei para ele, e me voltei para o jovem médico.
Doc, eu sei que sou um dos caras que mais “piranha” aqui.
Mais o quê, Tenente?
Mais “piranha” os outros. Que mais faz gozações e piadas com os outros. Mas lhe asseguro, pela felicidade dos meus pais, e lhe dou minha palavra de honra como Oficial, que o que vou lhe contar é verdade.
E comecei a contar a estória do dia anterior. De como saímos da sorveteria e fomos para um baile no centro histórico, onde ouvimos e dançamos reggae até cansar, na Jamaica Brasileira. Claro, partimos para cima das maranhenses, e todos tínhamos encontros para o dia seguinte. O Doc, com mais sorte, passou a noite com a moça que arranjou.
Era a madrugada de quinta para sexta. Saímos do baile e fomos caminhando pela rua do Norte, até alcançarmos a Praça da Saudade. Achamos estranho que todos vinham na direção contrária, mas ninguém no sentido em que caminhávamos.
Zé falou para que dobrássemos à esquerda, entrando na rua Euclides da Cunha, mas eu falei que tínhamos de andar mais um pouco e dobrar à direita, na Avenida do Gavião. Ele insistiu, e eu concordei. E nunca me arrependi tanto.
A rua estava deserta. Nenhuma alma viva além de nós dois. Interessante escolha de palavras: alma viva. Andávamos beirando o cemitério de São Pantaleão, mais conhecido como cemitério do Gavião. Contornávamos a Praça da Saudade, mais conhecida como praça do cemitério, quando vimos os portões do cemitério se abrirem.
Zé me fez parar. Sinal de respeito pelo féretro que vinha. Aquiesci, obedeci, e então me dei conta: uma procissão fúnebre às duas da manhã? Não tive tempo de contestá-lo: um tropel de cavalos foi aumentado, e vimos uma grande carruagem sendo puxada por quatro corcéis. Dois cocheiros montados na boleia a conduziam.
Conforme se aproximaram, pudemos ver uma cena pavorosa: dos quatro cavalos, apenas dois tinham cabeça. O sangue escorria vagarosamente pelos corpos cobertos de cortes abertos.
A carruagem diminuiu, parando em frente a nós. Moscas pousavam e voavam das feridas, e algumas delas tinham larvas. O cheiro horroroso da carne em decomposição fez o arroz de cuxá que tinha comido vir à minha garganta.
Um dos cocheiros tinha sido decapitado. O outro tinha a goela cortada, e sua camisa rota estava vermelha e molhada de sangue. Ambos pareciam escravos.
Zé fez menção de correr, mas o cocheiro degolado pegou o chicote. Deu uma chicotada no Zé e eu, por reflexo, me pus na frente, protegendo-me com meus braços cruzados no alto. Dois golpes laceraram meus membros e eu me encolhi de dor, caindo no chão. Zé ficou paralisado.
A carruagem era negra, desbotada. A iluminação da rua não deixava ver muitos detalhes. Todas as arestas eram cobertas por metal dourado, que estava descascado e enferrujado. Dentro dela, uma estranha luz começou a brilhar.
Zé me ajudou a levantar. Uma voz feminina e envelhecida nos chamou, e nos aproximamos. Um rosto descarnado, com vestes nobres, porém rasgadas, apareceu na janela. Assustamo-nos. O medo nos fez pensar em correr, mas o cocheiro já nos esperava com o chicote. Lembrei-me da dor que senti, os braços ainda ardendo, meu sangue pingando das mãos.
A mulher dentro da cabine fez um sinal para que nos acercássemos. Uma força nos empurrou para ela, malgrado nossa resistência. Resistir era, no mínimo, fútil.
Ela entregou uma vela ao Zé, que a recebeu com enorme relutância. Uma vela negra, acesa. Era a luz dentro da cabina. Aquele estranho vulto sumiu na escuridão do interior da carruagem.
O trote dos cavalos recomeçou. A carruagem fez uma meia volta, e entrou no cemitério do Gavião. Tirei as meias e fiz uns curativos de fortuna. Tivemos um problema sério para arrumar um taxista que quisesse nos trazer de volta ao porto, especialmente por causa das meias ensanguentadas nos braços. Chegamos ao navio quase às quatro da manhã.
Doc me olhava, espantado. Zé tinha se sentado novamente. Perguntei-lhe:
E aí, Doc? O que acha disso tudo?
Ele não respondeu de imediato. Suspirou. Depois riu e falou:
Tenente, o senhor está querendo me dar trote, né? Aposto que compraram uma vela preta e agora vão mostrar ela pra mim.
Na verdade, tentamos jogar a vela fora. Não conseguimos. Não podíamos largá-la, só passá-la de um para o outro e vice-versa — disse, apontando alternadamente entre Zé e mim mesmo —. Tentamos apagá-la, mas não pudemos. Nos faltava ar. O contramestre de serviço achou muito estranho quando entramos no navio daquele jeito, e segurando uma vela preta acesa! Zé se fingiu de bêbado e eu o ajudei a andar. Passei pelo pessoal de serviço e falei “nem queiram saber”, rindo. Peguei um pires na copa e fixei a vela nele e pus no canto do camarote. O resto você sabe.
E por que me chamaram aqui?
Lembra-se da lenda que a mulher da sorveteria contou?
Ele disse que sim. Perguntei-lhe se não faltava nenhum detalhe. Ele me respondeu que a mulher tinha falado que a vela, pela manhã, virava um osso.
Olhei para Zé. Ele pegou a mochila, e tirou o cobertor de dentro dela. Desenrolou-o e passou o fêmur ao Doc, que arregalou os olhos de tal forma, que pensei que fossem saltar das órbitas.
Preciso que me diga se isso é realmente um fêmur humano — disse, com uma calma que me causou estranheza. Doc titubeou, mas confirmou — Preciso também que não comente isso com ninguém.
E o que pretende fazer?
Vou ao cemitério. O túmulo dela fica lá. Vou deixar o osso nele.
Tenente, o senhor está falando sério mesmo?
Sim. Zé?
Que é?
Você vai à igreja matriz. Já que é católico, e eu não, você vai acompanhar a missa, e rezar com toda a sua fé pela alma dela.
Por quê?
Pelo que sabemos, Ana foi uma mulher que sofreu muito, mas que estava à frente de seu tempo. Ela não tinha escrúpulos, quando se tratava de dinheiro e poder. Se o osso é dela, gostaria que ela viesse fazer uma visita para pegá-lo de volta? Ou, sei lá: se ela nos deu uma vela... é... osso, por que não quereria algo de volta?
E você, Doc, bico calado, safo?
Pode deixar, Tenente!
Saí do cemitério e me encontrei com o Zé em frente à sorveteria. Somente um sorvete de nata-goiaba para nos acalmar.
Quase hora do rancho. Onde vamos almoçar?
Tô a fim de mais um arroz de cuxá. Vai?
Agora. Tá pagando?

Nem sonhando, camarada. Nem sonhando...

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