Conto:
A Namorada
Paulo.
Meu nome é Paulo. Hoje já passei dos quarenta, quase chegando aos
cinquenta. Mas eu vim aqui para falar da minha primeira namorada. Eu
falo para todo mundo que minha primeira namorada foi aos quinze;
conhecida de um amigo meu. Igreja católica. Não, não sou católico,
mas era uma concentração de jovens bons, unidos por um ideal, que
era fazer crisma. Não, eu não ia fazer crisma. Já disse: não sou
católico.
Eu
morei em Madureira. Dez anos. Não, no primeiro lado. O lado que o
pessoal chama de “lado do Tem Tudo”. A churrascaria, sabe? Tudo
bem: o quartel do Corpo de Bombeiros? Da Sendas? Rua Domingos Lopes?
É, esse lado mesmo.
Eu
morava perto da igreja de São Geraldo. Tinha catorze anos. Estava
fazendo cursinho, porque queria fazer prova para cursar um bom
segundo grau, já que não tinha dinheiro para pagar. Hoje eles
chamam de Ensino Médio. Até ai, nada a ver com namorada. Vou chegar
lá.
Nosso
apartamento era térreo, no final do corredor. Minha mãe colocou uma
porta de grade, com vidro, e transformou aquela área morta perto da
porta num vestíbulo. Só que quando alguém entrava ou saía, aquela
porta fazia um barulho terrível, porque as bandeiras com vidros eram
frouxas; batiam nos ferros das molduras, e haja ruído!
Uma
das coisas esquisitas que tínhamos em casa era um móvel de madeira:
um banco, com encosto, mas que o assento era uma tampa para um
compartimento. Era como se fosse uma arca na qual se pudesse sentar.
Colocávamos livros, papelada, e quaisquer outras coisas que
pudéssemos. Menos perecíveis, claro.
Sofarca.
Sim, sofarca. Mistura de sofá com arca. É, você já tinha
entendido, né? Era como eu chamava aquele móvel estranho. Sabe o
que era melhor? Quando alguém se sentava ou subia nele, fazia um
ruído ainda mais esquisito. Se eu souber fazer uma boa onomatopeia,
seria alguma coisa como prrrooooc. Não era só um estalo de
madeira: eram vários, juntos, seguidos, como se fosse um ronco.
Prrrooooc! E o melhor: o sofarca fazia aquele prrrooooc
sozinho. Não, não! Não era o calor, ou variação de temperatura
que fazia a madeira estalar. Só o peso de uma ou mais pessoas juntas
fazia isso.
Para
fechar o circo das esquisitices, tínhamos na sala um carrinho de
bebidas. De madeira, também. Duas rodas enormes, laterais. Dois
andares. Cheio de destilados, e copos longos. Por que estou falando
do carrinho? Porque de vez em quando os copos começavam a tilintar.
Sozinhos. Sem vento, nem nada. Não havia obras próximas, nem gente
passando, nem nada. Mas tilintava. Sozinho.
Uma
vez, quando eu estava só em casa, a porta de vidro fez seus
estrondos normais de abertura e fechamento. Umas três da tarde. Para
variar, eu não tinha feito nenhuma das tarefas de casa que minha mãe
tinha mandado. Ah, o início da adolescência... Desliguei
rapidamente a televisão, e me deitei de bruços, fingindo que estava
dormindo. Ouvi passos até o quarto onde eu estava. Uma presença
física. A voz da minha irmã falando “coitado... coitado”. Os
passos e a presença se afastando.
Tomei
aquilo como ofensa, claro. Pulei dentro do quarto da minha irmã
gritando, para dar-lhe um susto. Ninguém. Corria a casa toda. Nada.
Corri de novo, olhando em cada lugar onde ela pudesse ter se
escondido. Adivinhe: estava só. A única pessoa — viva, claro —
era eu.
Voltei
ao quarto, liguei a televisão. Prrrooooc! Levantei-me e fui
olhar. Ninguém. Voltei. Prrrooooc!
Olhei de novo. A casa toda.
Nada, a não ser a cozinha — que não tinha iluminação por luz
solar —, toda escura. Quando passei por ela, me arrepiei dos pés à
cabeça.
Nem
me lembro o que estava vendo na tevê. Não existia televisão por
assinatura ainda; devia ser a sessão da tarde. Algo que passasse o
tempo, e que me impedisse de lembrar das tarefas de casa que eu tanto
detestava. Prrrooooc!
Os copos tilintando, cada vez
mais alto e rápido. Um vulto passou no corredor. Gritei do quarto
mesmo:
— Para
de mexer nessa porra aí!
Parou.
Que bom. Já estava ficando de saco cheio de andar a casa toda. Posso
voltar a ver o meu filme tranquilam...
— Vem
cá... — uma
voz feminina falou. É isso mesmo: uma voz feminina me chamou.
Levantei-me
e fui para a cozinha, o caminho mais curto para a saída. Nem
tentei pegar minha chave; uma jovem estava parada bem no meio. Eu
conseguia ver a geladeira e parte da porta de saída por ela. Um
pouco mais baixa que eu. Loura, bonita, formosa. Com roupas dos anos
60.
— Q...
Quem...
— Mariana.
Por que você está aqui? Cadê minha casa?
— Eu
moro aqui. Aqui é a minha casa.
— Mas
aqui era a minha casa! Cadê minha família?
Eu
não sabia o que dizer a ela. Lembrei-me da minha mãe me dizendo que
tinham demolido uma casa velha para construir o prédio. Só faltava
ser a casa dela.
Ela
começou a chorar. A princípio, baixinho, mas numa angústia
crescente, e acabou soluçando com o rosto entre as mãos. Fui
abraçá-la, mas meus braços a atravessaram. Ela
viu. Entrou em desespero, perguntando como meus braços poderiam
tê-la atravessado, e em que havia se tornado. Que loucura, não?
Pois é.
Eu
falei para ela que devia
estar numa outra fase da
vida. Ela, claro, quis saber
que fase era essa. Eu disse a ela que devia ficar feliz, porque a
vida continuava. Ela começou a se acalmar. Devia ter a mesma idade
que eu. Lindos olhos azuis. Sumiu.
Fiquei
ali na cozinha, naquela penumbra, tentando entender tudo o que tinha
acontecido. Achava que eu nunca mais a veria, sei lá. Mas que ela
era linda, ah, isso era! Parecia um anjo, com aqueles cabelos louros
e encaracolados... E aqueles olhos? Pareciam duas bolas de gude
azuis! Olhe, foi há tanto tempo; que tipo de comparação um garoto
de catorze anos poderia fazer?
Não
contei à minha mãe quando ela chegou. Muito menos à minha irmã.
Pensariam que sou doido. De qualquer maneira, eu pensava que não a
veria mais.
Um
mês se passou. Nada de estrondos na porta de entrada. Nem de copos
tilintando. Sem prrrooooc.
À
noite, depois de estudar a
matéria do cursinho e ver um pouco de tevê, fui dormir. Sonhei com
Mariana. Sim, o nome dela era Mariana. Ela me disse. Como se diz por
aí, sonhei a noite toda. Ela se despediu de mim com um beijo, e
aquele foi o meu primeiro. É, loucura, eu sei: meu primeiro beijo
foi num sonho, com uma garota fantasma. Hilário!
Quando
acordei de manhã, eu estava excitado. Sim, bastante
excitado. Entrei embaixo duma ducha gelada para me acalmar, mas
confesso: mal podia esperar pela noite seguinte, quando poderia
encontrar Mariana de novo.
No
cursinho, as aulas passaram mais devagar que eu conseguia aturar.
Tinha uma menina em quem eu estava de olho no cursinho; ela era de
outra turma. A gente sempre se encontrava na hora do recreio.
Recreio, não, intervalo. Adolescentes não têm recreio, tem
intervalo.
Naquele
intervalo, só saí da sala para beber uma água. Nem fui encontrar
com mocinha que eu gostava. Só pensava na menina dos meus sonhos.
Literalmente, Mariana era isso.
Nem
sempre eu sonhava com Mariana. Mas
quando sonhava, ah... Beijos, abraços, carinhos... Longas conversas,
passeios
de mãos dadas... E, claro,
dois adolescentes com os hormônios em fúria, querendo descobrir
mais sobre o que era o amor.
Na
década de 80, as meninas se davam mais ao respeito do que se vê
hoje em dia. Não tinha esse negócio de “ficar”, nem essas
competições de quem pega mais quem. Bem, até tinha, mas eram os
rapazes quem faziam isso. Agora, imagine na década de 60. Mesmo com
toda a liberação feminina, havia garotas que tentavam se preservar,
mas que, ainda assim, queriam experimentar.
Mariana
era quem sempre me impedia de ir adiante, quando estávamos num, por
assim dizer, esfrega mais
quente. Pode-se dizer que ela me inspirou vários sonhos, digamos,
molhados. Eu era louco por ela, e sabia que sentia o mesmo por mim. E
eu queria mais, queria tê-la para mim, sonhava em construir uma vida
ao lado dela. Casar, ter filhos, e... me dava conta de que isso era
impossível. Como eu me casaria e constituiria família com um
fantasma?
Muita
gente diz que o amor é eterno. O meu provavelmente seria, de uma
forma tão literal que me assustava. Eu estava apaixonado por alguém
que, na prática, não existia, e que não seria capaz de me dar o
que eu queria: um futuro.
Prrrooooc!
Três e pouco da tarde, se me
lembro bem. Copos tilintando. Mariana no meio da cozinha, a mesma
roupa de sempre, linda como nunca. Seus olhos brilhavam. Meu coração,
como sempre, acelerou ao ver aquela que o possuía.
— Mariana?
O que houve? Pensei que ia ver você mais tarde, nos sonhos. Sabe que
aqui não posso te tocar e nem te abraçar.
— Eu
vim falar contigo, meu amor.
— Amor?
Eu? Você tá querendo dizer que me ama?
— Sim.
Eu amo você — ela
declarou, abaixando a cabeça, envergonhada.
— Mariana...
— Oi?
— Também
te amo!
— Que
bom, meu amor! Eu... eu acho que já chegou a hora da gente se amar.
— Mas
Mariana, a gente já se ama...
— Bobo.
Eu quero dizer que se você tentar me fazer sua, eu não vou te
impedir
Para
um garoto de catorze, quase quinze anos ouvir aquilo, bom... Imagine
como eu fiquei. Quase fui me deitar àquela hora, só para poder
finalmente possuí-la. Eu queria muito saber o que significava fazer
amor. O que era poder tocar uma garota intimamente, senti-la pronta
para me receber... possuí-la e a ela me entregar. Toda a loucura e
paixão de um amor adolescente, sem limites.
Eu
não estava com sono, mas fui para cama. Fechei os olhos, me
concentrando nas palavras e imagens de Mariana. Não demorou muito, e
entrei num estado de torpor, nem dormindo, nem acordado.
Ela
apareceu para mim. Estávamos num campo bonito, com flores e árvores
que eu nunca tinha visto. Um lago azul, e montanhas ao fundo,
encimadas por neve. Estava claro. Mariana se despiu, e pude ver como
era maravilhosamente gostosa. Entrou no lago, soltando um “ui”,
ao entrar em contato com a água. Seus mamilos imediatamente se
enrijeceram.
Não
pensei duas vezes: tirei minhas roupas e mergulhei no lago, emergindo
junto a ela. Nós nos beijamos, e começamos a nos amar. Nunca tinha
sentido aquilo. Mariana gemia e me instigava a ir mais rápido, e me
chamava de nomes que eu jamais pensaria que uma garota tímida diria.
Comecei a chamá-la de tudo o que me vinha na cabeça, e ambos
explodimos num orgasmo louco.
Saímos
do lago, ainda nus, e nos deitamos à beira dele. Mariana se aninhou
em mim, pousando a cabecinha no meu peito. Não tínhamos culpa,
apenas o amor que sentíamos um pelo outro. Acordei.
Sentia-me
diferente. Tinha cruzado a fronteira entre ser um adolescente e saber
o que é ser um homem. É, hoje eu sei que não é só isso. Escute o
resto da estória.
Acordei
no meio da noite. Eu estava com fome. Minha família tinha viajado, e
eu tinha ficado, porque teria prova no cursinho para tentar uma
bolsa.
Eu
ainda estava ofegante, mas me sentindo ótimo! Não tinha muita coisa
na geladeira, só um pão de forma e queijo. Leite também. Peguei
uma faca para cortar o queijo, e fazer um sanduíche. Do jeito que eu
estava com fome, pão com queijo e um copo de leite seriam um
banquete para um rei... até que ouvi o sofarca fazer aquele estalo
de novo. E os copos tilintarem.
Mariana
apareceu atrás de mim, causando-me um sobressalto. Quase me cortei
com a faca!
— Meu
amor, o que houve?
— Paulo,
você me deixou sozinha lá, depois que a gente fez amor...
— Oh,
meu bem... eu acordei...
— Eu
senti sua falta e vim aqui. Eu quero você do meu lado... para
sempre!
— Mas
Mariana... Nós estamos em mundos diferentes... Você sabe que eu
quero ter uma família um dia.
Mariana
pareceu não gostar nada. Ela disse:
— Você...
me... usou?
— O
que é isso, Mariana? Você sabe que sou louco por você!
— Então,
vamos viver nosso amor eternamente! Vem!
— Mariana,
eu nem completei quinze anos! Ainda tenho muito que viver. Não quero
morrer agora!
— Seu
safado! Você me enganou, só para me comer! Você vai se arrepender!
E
aquela linda menina loura e de olhos azuis se tornou repentinamente
mais alta que eu. Suas roupas deram lugar a escamas escuras, e aquele
lindo rostinho se tornou um
horroroso réptil, mistura de
gente e lagarto.
Garras
negras seguraram o meu pescoço, arranhando e me sufocando. Uma
risada gutural, que soava mais como um grupo de grunhidos, me gelou o
coração. Calafrios subiam e desciam loucamente pela coluna. O que
quer que fosse aquilo, me levantou do chão, até
eu quase bater com a cabeça
no teto.
— Seu
puto! Ficou de amorzinho, agora, vai ficar preso para sempre!
Ainda
me segurando pelo pescoço, me baixou próximo à pia. Mandou que eu
pegasse a faca. Falei que não. Mas aquele monstro fez alguma coisa
comigo, e peguei a faca.
— Agora,
apunhale seu coração!
— Não
— gritei,
mas encostei a faca no meu peito, lutando com todas as minhas forças
contra isso. Comecei a sentir a dor da ponta penetrando minha carne.
— Meu
Deus, perdão pelos meus erros! Por favor, me receba!
O
lagarto monstruoso
soltou um grito, e me jogou
em cima do fogão. É. Fiquei com essa cicatriz aqui, no braço
esquerdo. Ele sumiu numa nuvem de fumaça, soltando todos os
palavrões que eu conhecia, e outros que nunca tinha ouvido antes.
Sentei-me
no chão, sentindo o pescoço arder com os arranhões. Meu corpo todo
doía, e minha camisa tinha uma pequena poça de sangue. Levantei-me
com alguma dificuldade, joguei o leite e o resto do sanduíche fora,
e me sentei para ver televisão. Não conseguiria dormir.
Mais
alguns meses, e passei para o Colégio Naval. Conheci minha primeira
namorada — viva
— e
a vida seguiu em frente.
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