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terça-feira, 18 de novembro de 2014

Novo conto: Drama

Drama

Depois que perdi minha família, a depressão quase se apoderou de mim. A tristeza era minha companheira diária, e não raro eu me surpreendia chorando a falta deles. Mesmo as brigas que tínhamos me faziam falta, e as consultas com neurologistas acabavam sempre com a recomendação de algum remédio que me entorpecia os sentidos, deixando-me sonolento, envolto numa modorra de dar dó.
Uma amiga médica, no entanto, tomada de compaixão e conhecedora do eu antes das tragédias pessoais, inscreveu-me num programa inovador, que pesquisava curas para a depressão. Passei a tomar um medicamento que realmente não me afetava em nada. Nem na depressão!
Com as consultas e um pouco de orientação, voltei a fazer exercícios, a ocupar a minha mente, e então pude sentir os benefícios do novo remédio. Realmente funcionava muito bem... bem até demais! Comecei a desenvolver novas capacidades, as quais mantive em segredo. A droga experimental me deu a habilidade da telecinese, além da projeção emocional.
A princípio, eu conseguia mexer pequenas bolinhas de papel e fazer com que as pessoas à minha volta tivessem sutis variações de humor. Até aí, nada demais, apesar de não ser algo exatamente normal.
Um dia, porém, ao sair atrasado para o trabalho, o carro não quis pegar. Tentei algumas vezes, sem sucesso, até que, num rompante, soltei um berro e bati com as duas mãos no volante: o carro foi imediata e rapidamente arrastado dois metros adiante, quase batendo noutro que estava parado na vaga à frente. Percebi, então, que minhas emoções influenciavam nos meus ditos poderes, e passei a praticá-los em lugares desertos.
Ao ser capaz de levantar carros com facilidade, movendo-os de um lado para o outro, perguntei-me: “será que posso me mover”? A resposta foi, claro, uma experiência que começou com um formigamento que se espalhou como um raio pelo meu corpo, e eu fui capaz de voar! Sim, agora eu realizava meu sonho de criança, conseguia voar sem nenhum aparelho!
Voltei para casa e, ao apontar o carro para a garagem, fui surpreendido com uma arma na minha cabeça. Soltei lentamente as mãos do volante, levantando-as, e olhei na direção do ladrão, que começou a fungar. Ato contínuo, abaixou a arma, chorando, e sentou-se no meio-fio, maldizendo aquela vida e sua sina. A arma, sozinha, levitou de sua mão e se desmontou, para seu espanto. Levantando-se e enxugando suas lágrimas, ele sumiu, se benzendo, para nunca mais aparecer. Deu um pequeno sorriso e entrei tranquilamente na garagem.
À noite, na televisão, anunciaram que construiriam um acelerador de partículas no interior do Nordeste, e o país, que já estava dividido, ficou ainda mais partido. Quase todos os segmentos da sociedade, independentemente de viés ideológico, classe social e grau de instrução, gritaram que o país tinha problemas muito mais sérios a tratar. O governo, no entanto, querendo fazer parte de uma nova iniciativa para o desenvolvimento de uma fonte de energia limpa e duradoura, achou que seria bom investir o que lhe restava de caixa no projeto.
O grande problema foi que não conseguiam trabalhadores para a faraônica obra, visto que a população, em grande parte, era coberta por programas assistenciais do governo; sua única fonte de renda e, provavelmente, de alimentação. O emprego na construção do acelerador lhes daria melhores condições, porém, se aceitassem o trabalho, seriam automaticamente desligados.
Foi então que o governo lançou uma campanha por todo o país, chamando e recrutando trabalhadores de diversas áreas, a fim de que pudesse tocar o projeto adiante. Dadas as proporções gigantescas do projeto, em praticamente todas as áreas havia necessidade de pessoal.
Como não tinha mais nenhuma ligação com minha querida e maravilhosa cidade, decidi tentar a vida naquelas paragens. Já conhecia o Nordeste, seu clima ensolarado e pessoas hospitaleiras, e melhor: ainda tinha parentes lá.
A localização do acelerador era numa cidadezinha a pouco mais de meia hora de carro de onde meus parentes moravam, na capital do estado, e seria ótimo conseguir um lugar para morar lá. Trabalho e praia, tudo que um carioca marinheiro precisa para crescer forte e feliz. E com sol o ano todo!
Seis anos e vários desvios de verba depois, o acelerador estava pronto para o primeiro teste. Coincidentemente, a capital e a cidadezinha quase não tinham mais crime. Um misterioso homem voador assustava os ladrões, fazendo com que eles chorassem como crianças, ou mesmo rissem até molharem as calças. Por fazer aflorar as emoções de uma maneira estupidamente intensa, a imprensa começou a chamá-lo de “Drama”, um nome que pegou.
Drama, claro, era eu. Um símbolo. Não tinha uniforme. Usava roupas e sapatos comuns, mas aparecia de onde menos se esperava. Para manter a identidade secreta, usava uma balaclava preta, e era capaz de dominar grupos de bandidos, fazendo com que se entregassem, aos prantos, à polícia. As cadeias locais começaram a sofrer de superlotação...
Eu trabalhava na administração do projeto, e fui convidado para assistir ao teste. Os cientistas puderam trazer suas famílias.
Duas equipes saíram em carrinhos elétricos, desses de campo de golfe, para verificar se havia alguém, antes que os poderosos ímãs fossem ligados, dando início à aceleração. Uma delas foi para o anel maior, enquanto a outra percorria o menor. Cada vez que passavam por uma seção, as portas estanques eram hermeticamente fechadas.
Tudo pronto, hora de começar. Uma das esposas dos cientistas deu por falta de seu pequeno, e todos começamos a procurá-lo pela ampla sala de controle. O tempo passava, os procedimentos de acionamento eram cumpridos, e a angústia daquela mãe aumentava. Sensibilizado, projetava calma em seus sentimentos, mas o instinto materno era forte demais. Aliás, como deve ser.
Gritos interromperam meus pensamentos: era um dos cientistas operadores, apontando para um dos monitores. Olhamos para ele, e imagem aterrorizou-nos a todos, sem exceção: o pequeno tinha se escondido num dos corredores do anel maior, e agora batia na porta, pedindo para sair.
Para piorar as coisas, ele havia mexido numa das válvulas de resfriamento do condutor secundário, o que causaria uma explosão com consequências que ninguém sabia ao certo quais seriam. Nada para se preocupar, bastava apenas apertar o botão de parada de emergência, esperar as partículas pararem, e ir buscar o garotinho. Seria ótimo, se a parada de emergência não falhasse miseravelmente.
Os berros de socorro da mãe se juntaram aos uivos da sirene de alerta de acionamento, misturando-se ao burburinho das pessoas que não sabiam o que fazer. Aproveitando-me da atenção que estava concentrada no monitor, tirei a camisa social que usava, ficando apenas com uma camiseta branca, e vesti a balaclava. Voei da sala, arrebentando as portas pelo caminho, o mais rápido que podia.
Quando cheguei ao menininho, ele chorava pela mãe, mas me reconheceu, chamando-me de “Dama”. Tudo bem, nem todos conseguem falar “Drama”, principalmente se nem falam direito ainda.
As luzes estroboscópicas vermelhas giravam no ritmo das sirenes, encimadas apenas pelo zumbido intermitente e crescente do acelerador. Tentei pegar o menino para sair dali, mas o campo magnético puxou-me pela fivela do cinto, prendendo-me de barriga ao tubo condutor principal. Não conseguia me mover, muito menos tirar o cinto!
Uma voz no comunicador da parede gritava para que eu saísse dali, pois tudo estava prestes a ir pelos ares. Fiz o garotinho flutuar e o enviei de volta à sala, puxando todas as portas que tinha arrombado para perto da seção onde eu estava. Depois, não me lembro de mais nada.
Acordei num leito de hospital, sem saber direito onde estava. Sabia que já tinha estado naquele lugar, mas não me lembrava onde era. Olhei pela janela, e vi uma parte da minha cidade natal. Cidade natal? Rio de Janeiro? Mas eu estava no Nordeste até bem pouco tempo...
Olhei em volta e vi a minha amiga médica sentada numa poltrona, dormindo. A porta do quarto entreaberta, e um policial de cada lado. As fardas da Polícia Militar do Rio confirmavam minha suspeita.
Chamei minha amiga, que acordou. Sendo seu paciente, dava a ela o privilégio de entrar e sair quando queria. Ela ficou feliz em me ver, mas a interrompi; queria saber como eu tinha ido parar ali. Soube por ela que tinha salvo o garotinho e todos os que se encontravam no raio destrutivo da explosão do acelerador. Fiquei com mais de cinquenta por cento do corpo queimado, e quando viram que eu era marinheiro, enviaram-me de volta para o hospital da Marinha, no Rio de Janeiro. Fui direto para a Ala de Queimados, e lá permaneci em coma por quase um mês.
Quis saber sobre o motivo dos policiais na porta. Ela me disse que havia dois: com a explosão, a identidade secreta de Drama havia sido revelada, e eu seria condenado por fazer justiça com as próprias mãos; e os bandidos, sabendo quem os combatia eficazmente, não hesitariam em me eliminar. Eu podia voar, desmontar armas e fazer criminosos se entregarem à polícia dançando quadrilha de São João, mas não era invulnerável.
Ser condenado por fazer o bem... Só mesmo neste país! Eu nunca tinha encostado a mão num meliante, e fazia com que eles se entregassem às autoridades competentes. Portanto, não era, exatamente, justiça com as próprias mãos. Eu me tornava mais um incompreendido...
Comecei a sentir muita dor, e minha amiga chamou a enfermeira, enquanto aumentava a dose de morfina do meu soro. Dormi.
Acordei sozinho, de noite, e tentei usar meus poderes. Ao fazer o esforço mental, todo o meu corpo respondeu com uma dor pungente, como se várias espadas tentassem me atravessar. Melhor começar com alguma coisa simples... o copo de plástico vazio em cima do criado-mudo! Consegui movê-lo, mas senti muita dor. Vou esperar melhorar. Preciso ao menos tentar me sentar... nada. Dor demais. Durmo novamente.
Acordo com o enfermeiro me dizendo que virá me dar um banho mais tarde, para tirar a pele morta e enrugada. Ele me diz que “vai doer um pouquinho”. Em toda a minha experiência de vida, sempre que alguém da área de Saúde me disse que doeria “um pouquinho”, é porque arrancariam o meu couro, ou coisa parecida. Preparei-me para o pior.
No dia seguinte, ainda com os novos curativos e agradecendo a Deus pela bendita morfina, vejo minha amiga médica novamente. Fico feliz com aquela presença feminina, com seu jeito de menina, e rapidamente me lembro de que ela é casada, e tem duas filhinhas lindas. Não me permito pensar mais nada, só tento projetar mais alegria em sua mente. Consigo, mas sou parado pela dor no corpo inteiro. Essa droga não vai passar?
Ela me cumprimenta, eu lhe dou um polido “bom dia”, me viro para os policiais do lado de fora, e os cumprimento também. Um deles me olha e sorri, desejando-me um bom dia, levando uma imediata reprimenda do outro.
Minha amiga diz que quer me fazer uma pergunta, mas não sabe como. Eu lhe digo que não tenho nada a lhe esconder, e que pode perguntar. Ela, então, me olha nos olhos e me pergunta como foi que desenvolvi poderes, transformando-me em “Drama”. Minha resposta não poderia ser outra: tinha sido o remédio, claro.
Ela contorna a cama. Olha pela janela e volta a me encarar. Solta um longo suspiro, e fala que não sabe como vai me dizer o que precisa me contar. Eu me ajeito na cama, a morfina quase não segura a dor. Ela me diz que o remédio jamais poderia ter me causado isso. Eu lhe pergunto o que poderia ter causado, se não fosse o remédio? E as centenas de bandidos presos? Os resgates miraculosos? E as melhorias na segurança das cidades onde eu atuava? Eu voava e manipulava objetos mentalmente, vai me dizer que não tinha superpoderes?
Ela me conta, então, o que quase me faz parar o coração: faço parte do grupo de controle. Desde que comecei o tratamento, há mais de seis anos, que só tomo placebos!

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Novo conto: Fogos



É, eu me lembro bem quando comecei a conversar comigo mesmo, como faço agora. Foi logo depois de eu ter me tornado amargo e rancoroso. Solitário. Eu tive família, sabia? Claro que sabia! Estou falando comigo mesmo...
O mundo virou um lugar inabitável, é tudo uma merda, e eu peço todos os dias para Deus acabar comigo. Quero rever minha família. Paradoxalmente, procuro desesperadamente sobreviver nesse “admirável mundo novo”.
Eu me lembro de quando os fogos pararam de falar. Os fogos, porra, não se lembra? Não me lembro? Essa coisa de falar comigo mesmo me confunde, às vezes.
Fogos-fátuos sempre falaram. Nunca descobriram uma razão científica para isso. Os que vinham de pântanos eram os puros, mas só uivavam, rugiam ou assoviavam canções. Algumas sem nexo, outras transformadas em sinfonias pelos nossos compositores.
Já os que surgiam dos túmulos ditavam cartas, poemas, ou mesmo davam discursos. Alguns deles até permitiam diálogos, respondendo a perguntas e travando discussões, porém, nunca acaloradas. Todos sabíamos que não era a personalidade do cadáver que ali se encontrava, pois as ideias eram as mais variadas. Até divergiam ao extremo oposto da opinião da pessoa falecida, com vozes totalmente diferentes.
Um fogo-fátuo por vezes assumia uma voz feminina num túmulo masculino; o contrário também se dava. Eram manifestações de entidades inteligentes. Quando se perguntava a eles o que eram, ou quem tinham sido, não respondiam. Nunca nos garantiram a vida após a morte.
Mas os fogos se calaram antes de uma eleição. Uma grande “festa da democracia”, os imbecis diziam. “É o auge da democracia”, outros berravam. Mas eu sabia. Alguma coisa estava para acontecer, e aconteceu mesmo. Eu esperava que as coisas fossem difíceis, mas não pensava que seriam o fim do mundo.
Era eleição. Depois da campanha mais baixa e torpe de todos os tempos, um dos partidos ganhou, quebrando décadas de hegemonia do que governava. Mesmo com as fraudes eleitorais, já conhecidas, não houve jeito: tiveram de entregar o poder aos adversários de tantos anos.
Porém, grupos que apoiavam a situação tinham passado toda a campanha dizendo que, se perdessem, haveria guerra. Eu pensava que seriam greves, pequenas sabotagens aqui e ali, coisa que passaria depois do primeiro ano. O normal de sempre. Mas eu sabia que seria diferente. Eu sentia.
Antes de sair, o “partidão”, como se referiam a ele, orquestrou várias ações que tornariam nossas vidas mais difíceis. Retiraram boa parte das unidades militares das fronteiras, permitindo que drogas e armas entrassem livremente, e abastecessem o crime nas várias favelas das capitais e cidades maiores. Quanto mais lucro do tráfico, mais dinheiro para treinamentos e armas.
Aceitaram dezenas de milhares de imigrantes, legalizando-os automaticamente, e os colocaram junto às favelas. Muitos eram ex-integrantes das forças armadas de seus países de origem, bem treinados e preparados no uso de armas e combate corpo a corpo.
Concederam vistos a quaisquer habitantes de países notoriamente conhecidos por abrigarem grupos terroristas. Muitos fugiram de seus países de origem, procurando uma terra pacífica. Outros vieram ajudar a acabar com o futuro, trazendo seu conhecimento em terrorismo e guerrilha urbana.
E aí, começou: grupos simpatizantes aos perdedores começaram a achacar não somente os notoriamente partidários dos vencedores, mas qualquer um que não os apoiasse. A princípio, eram somente ataques verbais, depois, houve uma escalada da violência, e a polícia começou a intervir.
Os policiais deixaram de conseguir controlar as arruaças quando grupos fortemente armados começaram a tomar parte nelas. Muitas mortes foram registradas dos dois lados, e as forças armadas também foram chamadas, para garantir a lei e a ordem. Foi nesse momento que minha vida começou a ruir.
Não, cara, nada disso! Olhe só: eu estava indo à padaria com meus dois filhos. É, um adolescente, e o outro pequeno. Estava feliz porque começaria a aprender a ler e escrever no ano seguinte.
Ao voltarmos, nos deparamos com um grupo de partidários. “Lutadores da Liberdade”, se chamavam. Perguntaram-nos sobre quem apoiávamos. Disse-lhes que não apoiava ninguém, e que só queria viver minha vida em paz. “Não queremos problemas”, falei.
Eu e meu filho mais velho tentamos lutar com eles quando avançaram em nossa direção, com os olhos injetados de sangue. Conseguimos nocautear uns quatro, mas eram muitos, e acabamos presos. Ali mesmo, na calçada, cortaram os tendões dos braços e pernas do meu filho adolescente, transformando-o num boneco ensanguentado que urrava de dor. Mandaram-no se calar, ou fariam com que silenciasse de vez.
Gritei que faria o que quisessem, mas um dos bandidos que fazia a segurança do grupo cortou-lhe o pescoço com uma katana, fazendo com que se engasgasse em seu próprio sangue. Daí, viraram-se para meu filho mais novo e o pegaram, segurando seus quatro membros, puxando cada um numa direção. A cada estalo dos ossos saindo das articulações, uma rachadura em minh'alma, já despedaçada. Por fim, o bandido pegou sua espada e esquartejou meu pequeno. “Tenha uma boa vida”, me disseram, e foram embora.
Não sei quanto tempo fiquei ali, afogando-me na confusão de sentimentos de ódio, perplexidade, dor, tristeza e desespero. Estranhamente, não verti uma única lágrima, apenas me ajoelhei ao lado dos corpos daqueles que foram minhas maiores riquezas. Nenhum grito, suspiro, nenhum “ai”. Ali fiquei em dúvida da existência de um Deus, e quais seriam seus desígnios.
Pedi a um desses burros-sem-rabo que me ajudasse a levar os cadáveres para casa, e lá os velei. Enterrei meus filhos com uma esposa em choque ao meu lado. Não demorou muito, e a enterrei também. Definhou até a morte, sem entender o porquê de tudo aquilo.
A sequência de eventos foi quase óbvia: as forças armadas, sucateadas, não duraram muito contra os bandidos e terroristas, financiados pelas fortunas acumuladas pela corrupção, bem como outros países simpatizantes. Uma guerra civil se instaurou no país, e todos pensamos que ela acabaria quando os perdedores fossem novamente guindados ao poder.
A chamada “esperança” devolveu o poder que tinha ganho democraticamente. “Esperança”... Sei! Nunca acreditei em políticos santos, nem em salvadores da pátria. Mas entregaram o poder de volta e os perdedores, claro, aceitaram... e este foi seu maior erro.
Os bandidos e terroristas que apoiaram o novo — ou velho? — governo quiseram fazer imposições, mas quem é autoritário só aceita condições até conseguir o que quer. Até aí, o mundo inteiro só olhava, de longe, o que acontecia nestas paragens; entretanto, quando os terroristas detonaram duas bombas sujas em estações do metrô do Rio e São Paulo numa terça-feira, às cinco e meia da tarde, as coisas começaram a mudar.
Em duas semanas, o número de mortos chegou à casa das centenas de milhares, sem falar nos outros tantos contaminados, que também se tornaram óbitos. O mundo decidiu, então, intervir, mas o governo não aceitou países que não professassem a mesma forma de governo. Como era de se esperar, uma das potências não admitiu ficar de fora, e a escalada de violência entre eles resultou numa guerra global. Evitaram, no entanto, usar armas de destruição em massa.
Drogas, armas e até veículos militares continuavam a entrar livremente pelas nossas fronteiras. Os terroristas, perdendo o apoio que tinham, mantiveram sua união com os bandidos, e contaminaram a água do país, dono de vinte por cento das reservas potáveis mundiais. Bombardearam cidades com aviação de caça. Mais algumas dezenas de milhões morreram.
Mantive-me vivo porque fugi para o norte, e comecei a trabalhar numa colônia de pescadores. Sabia navegar, e isso bastava. Tive de fazer de conta que só sabia assinar o nome, a fim de não atrair atenção. Falava errado, também. Mudei meu sotaque.
Bebia água de coco, suco de melancia, ou sangue de peixes marinhos. Comer, só peixe. Vivia só e falava o necessário. A dureza e falta de palavras se encaixava perfeitamente na vida de “pescador sem estudo”.
Quando o mundo virou um lugar estéril, com cidades-estado amuralhadas, eu já estava com pouco mais de setenta anos. Consequência da guerra e do terror. A população mundial caiu para um décimo do que era, beirando os setecentos milhões. Não sei ao certo os números, porque a guerra acabou com toda a infraestrutura.
Não tínhamos mais comunicações de longa distância, internet, e até mesmo canais de televisão eram proibidos, porque a geração de energia era insuficiente para todos. Sim, sim, usávamos a bosta dos animais que criávamos para produzir metano e mover uma pequena termelétrica.
Deixei de ser pescador para ser bosteiro, como denominavam na cidade em que passei a morar. A economia girava praticamente em torno da geração de energia, e o escambo era a moeda. Quanto atraso, e tudo por conta da nossa própria idiotice.
As costas me doíam, mas ser bosteiro me garantia um bom sustento. Num dos dias em que estava lá, trabalhando, um dos adolescentes maltrapilhos da pequena cidade chegou esbaforido. Sentou-se, arfando, e disse que os fogos tinham voltado a falar. Décadas em silêncio, e voltaram a falar. Por que só agora?
Depois de retomar o fôlego, ele me disse que estavam me chamando. “Quem é que tá me chamando”, perguntei-lhe, com medo da resposta, que eu já imaginava: os fogos. Sentei-me. Respirei fundo. Quis saber se tinha certeza, afinal, tinha muitos Paulos na nossa cidade-estado. Ele me respondeu que os fogos chamavam pelo “Paulo bosteiro”. Era eu. Sem dúvida. Eu mesmo.
Fui lá, e várias chamas se faziam presentes nos túmulos. Tinham curtas, porém diferentes durações, produzindo chiados aleatórios. Uma pequena multidão já se formava em torno dos sepulcros. Apurei os ouvidos, mas só consegui discernir os “fsssssss” dos gases escapando. Nada.
Dei de ombros e me virei, quando ouvi a vozinha do meu pequeno me chamar:
— Papai... Papai... Não vá, fique comigo...
Meu garotinho. Uma alma imortal num corpo jovem, depedaçado pela crueldade, há tantas décadas. Traquinas, mas carinhoso. Cheio de vida, ao ponto de deixar eu e minha mulher de cabelos desgrenhados ao fim do dia.
Não. Não é possível. Os fogos são inteligentes, mas nunca se apresentaram como pessoas que tinham vivido antes. É um truque, só pode ser!
Ôxi! Tu é quem — perguntei, aos berros e irado, com meu sotaque, àquela voz.
— Sou eu, papai. Eduardo. Você tá muito triste. Não pode ficar assim, papai.
Tu é quem, fiduma égua — insisti, contendo as lágrimas, fazendo-me de firme.
— Papai, você sempre falou que quem trocou minha primeira fralda, quando eu era bebezinho, foi você. E me deu o primeiro banho também.
O peso da amargura me fez dobrar os joelhos lentamente, tocando a terra vermelha com eles. As lágrimas desceram como pequenos rios que tinham finalmente conseguido romper uma barreira de granito.
— Papai, o Marcelo também está aqui.
Meu outro filho. O adolescente. Quase trinta anos atrás. Meu coração. O ar. O ar falta. Pulso acelerado. Hiperventilação. Calma, porra, calma! O sangue. Boneco ensanguentado. Meu coração. Menino despedaçado. Calma, cacete!
— Pai — falou Marcelo. Era ele, sim. Prolongava a palavra, como se estivesse com preguiça.
A esta altura, eu já estava sentado. Arfava. Tentava sem sucesso secar as lágrimas, aquelas que eu não tinha derramado no momento em que me desejaram uma “boa vida”. As que eu não derramei em quase trinta anos.
— Pai... Não foi sua culpa. Tudo bem, pai. Tá tudo bem.
— Meu filho... eu... eu...
O coração. Quer sair pela boca. A arritmia é tão forte, que a sinto batendo nos tímpanos. Calma, porra!
— Pai...
— Que foi, filho — a pergunta saiu sem sotaque falso.
— Mamãe tá aqui também. Ela quer falar com você.
Não. Por favor. Parem com isso. O caixão. O caixão descendo vagarosamente. Tão devagar quanto a vida se esvaía dela, que tinha perdido tudo o que considerava precioso. Eu também tinha perdido. Eu tinha falhado. Eu tinha que ter dado a vida para salvar meus filhos. Tinha!
— Paulo, deixa isso prá lá. Você ficou muito tempo vivendo assim, se escondendo nessa tristeza toda. Vai, meu amor. É hora de você se livrar disso.
— M-mas...
— Deixa, meu amor! Não ouviu o Marcelo falar? Não foi sua culpa!
O coração. As vistas querem escurecer. Dores no fundo e alto da cabeça. Minha pressão deve estar alta. Os tímpanos soando como címbalos em mãos furiosas.
Alguém se vira para mim e me pede para perguntar aos fogos como é a vida noutro lado. Não consigo respirar. Sinto uma pontada no peito.
— Vem, meu amor. Junte-se a nós.
— Vem, pai...
— Vem, meu papaizinho querido!

Uma dor forte no peito. As vistas se escurecem. Quem me viu, disse que um fogo diferente saiu do meu corpo quando, já morto, tombei. Não era azulado como os outros fogos-fátuos, mas amarelado. Não houve palavras. Só liberdade e felicidade.