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sexta-feira, 4 de julho de 2014

Novo conto: Carruagem

 — Como foi que o senhor conseguiu esses cortes nos braços mesmo — o médico do navio perguntou. Estávamos atracados porto de Itaqui, no Maranhão, desde o dia 12. Era agosto de 1997, dia 14, sexta-feira, e eu ainda tinha dificuldades para acreditar no que tinha acontecido na noite anterior.
Doc — apelido de qualquer médico da Marinha —, alguém me atingiu com algo que parecia ser uma chibata.
O quê?
Um chicote, Doc.
Chicote, Tenente — perguntou Doc, prolongando as sílabas, estampando a descrença no seu rosto. Eu não queria falar sobre aquilo. Ninguém acreditaria, mesmo.
Doc, você crê em Deus?
Por que, Tenente?
Só lhe perguntei. Acredita?
Eu fui criado numa família muito católica. Cresci acreditando em Deus; fiz catequese e Primeira Comunhão. Até crisma! Mas... Depois que entrei na faculdade de Medicina, não vi razão nenhuma para acreditar na existência de um ser maravilhoso, sobrenatural. O que salva vidas num hospital é o que eu sei, o que eu estudei, e o que eu tenho à disposição para tratar meus pacientes.
Muito bom, Doc. Eu já creio que Deus guie sua mão.
Então, para que eu estudei? Se Deus pode guiar minha mão mesmo...
Veja, Doc: por que você trata dos doentes?
Porque sou médico.
E por que você não manobra com o navio? Por que quem faz isso sou eu?
Ué, Tenente... porque o senhor foi treinado para isso.
Exatamente, Doc. Eu acredito que Deus me guia, mas eu tenho que, pelo menos, saber o que fazer, para que Ele possa me inspirar. Se eu tentasse fazer algo para salvar uma vida, num tratamento médico complexo, eu seria totalmente incapaz. Nem Deus poderia me dar a graça de salvar uma vida assim.
Pois é, Tenente. Eu até acreditava nisso, até que perdi meu primeiro paciente. Morreu nos meus braços, mesmo com tudo o que eu fiz e com todas as orações que fiz. Não faltou fervor e fé da minha parte, e o que o seu Deus fez? Tirou a vida do meu paciente!
Calei-me. Não adiantaria discutir com ele. Mas o que tinha acontecido estava além do que qualquer ciência explicava. Se bem que essa pequena discussão tinha sido engendrada por mim mesmo, para desviar a atenção do chicote que tinha me causado os ferimentos.
Voltei para o meu camarote. Quando entrei, meu amigo de turma se levantou, num sobressalto. Lívido, ele se sentou, colocando a cabeça entre as mãos, sacudindo-a. Ele teve a sorte de não ter sido atingido pelo que tínhamos visto.
Porra, Paulo, o que a gente vai fazer?
Como assim, Zé — perguntei — O que houve?
Ele apontou para o canto do camarote. Um cobertor amarfanhado estava jogado lá. Puxei, e quase caí para trás: um fêmur.
Zé, que porra é essa — perguntei, tentando manter minha voz baixa, senão o Comandante e o Imediato escutariam — E cadê aquela merda daquela vela que aquela mulher deu pra gente?
Essa merda desse osso é a vela, porra! Cacete, Paulo, como é que vão ficar nossas carreiras quando descobrirem um osso humano velho aqui com a gente? Olha só, tem até terra nele! E parece aquela terra de cemitério!
Peguei minha mochila, joguei o que estava dentro no armário, e a passei para o Zé. Falei para ele fazer um rolo com o cobertor em volta do osso e colocá-lo dentro dela. Virei-me em direção à porta, mas Zé se levantou e me segurou.
Porra, Paulo. Que que tu vai fazer?
Falar com o Doc.
Tá maluco, porra? Quer que todo mundo saiba?
Zé, a gente não tem certeza de que esse osso é humano. O Doc vai saber identificar.
Cinco minutos depois, o Doc entrava comigo no camarote. Prestou continência ao Zé, que olhou para ele, em prantos. Doc me fitou, com cara de quem não entendia nada.
Fiz um sinal para o Zé para que chegasse para o lado, para eu poder me sentar na cama, ao lado dele. Mostrei a cadeira para o Doc, e ele se sentou. Comecei a falar:
Doc, precisamos da sua ajuda.
Afirmativo, Tenente!
Doc, olhe só: pode me tratar como um paciente. Aliás, eu e o Tenente aqui. Você sabe que eu e ele somos da mesma turma desde o Colégio Naval, né? São catorze anos de amizade, já — Nem sei por que falei aquilo. Não tinha nada a ver com a conversa. Não importa, as palavras morreram nas anteparas do camarote.
Precisamos do seu conhecimento, mas também do seu sigilo profissional — continuei — Posso contar com você?
Pode, Tenente, mas do que se trata?
Lembra-se da conversa que tivemos sobre Deus?
O que isso tem a ver?
Tem a ver com o que aconteceu ont...
Paulo — Zé quase gritou, e segurou nas bandagens do meu braço, me interrompendo. Respondi-lhe com uma careta e um gemido de dor. Ele me soltou imediatamente, lembrando-se de como eu tinha conseguido o ferimento.
Doc, tente manter uma mente aberta, está bem? Lembra-se de que saímos ontem?
Sim, senhor. O senhor até me contou a lenda do ônibus fantasma de Itaqui — disse, rindo, porque ninguém do navio tinha visto o ônibus que fazia a ligação Itaqui-São Luís. Ou ele tinha acabado de sair, ou ainda demoraria para chegar... E o espaço entre os ônibus era de duas horas, mas não era regular. Podia variar muito mais.
Tudo bem, Doc. Lembra-se de que rachamos o táxi para o centro histórico, e que paramos numa sorveteria para experimentarmos...
Sorvete de nata-goiaba! Sim, Tenente, mas é daí?
Bom, você se lembra da estória que a dona contou pra gente?
Da Rainha do Maranhão? Ana... alguma coisa com “J”...
Ana Jansen — completei. Ele riu. Peguntei-lhe se queria saber como eu tinha arrumado o ferimento. Ele disse que sim. Zé se largou no resto de espaço que tinha na cama. Olhei para ele, e me voltei para o jovem médico.
Doc, eu sei que sou um dos caras que mais “piranha” aqui.
Mais o quê, Tenente?
Mais “piranha” os outros. Que mais faz gozações e piadas com os outros. Mas lhe asseguro, pela felicidade dos meus pais, e lhe dou minha palavra de honra como Oficial, que o que vou lhe contar é verdade.
E comecei a contar a estória do dia anterior. De como saímos da sorveteria e fomos para um baile no centro histórico, onde ouvimos e dançamos reggae até cansar, na Jamaica Brasileira. Claro, partimos para cima das maranhenses, e todos tínhamos encontros para o dia seguinte. O Doc, com mais sorte, passou a noite com a moça que arranjou.
Era a madrugada de quinta para sexta. Saímos do baile e fomos caminhando pela rua do Norte, até alcançarmos a Praça da Saudade. Achamos estranho que todos vinham na direção contrária, mas ninguém no sentido em que caminhávamos.
Zé falou para que dobrássemos à esquerda, entrando na rua Euclides da Cunha, mas eu falei que tínhamos de andar mais um pouco e dobrar à direita, na Avenida do Gavião. Ele insistiu, e eu concordei. E nunca me arrependi tanto.
A rua estava deserta. Nenhuma alma viva além de nós dois. Interessante escolha de palavras: alma viva. Andávamos beirando o cemitério de São Pantaleão, mais conhecido como cemitério do Gavião. Contornávamos a Praça da Saudade, mais conhecida como praça do cemitério, quando vimos os portões do cemitério se abrirem.
Zé me fez parar. Sinal de respeito pelo féretro que vinha. Aquiesci, obedeci, e então me dei conta: uma procissão fúnebre às duas da manhã? Não tive tempo de contestá-lo: um tropel de cavalos foi aumentado, e vimos uma grande carruagem sendo puxada por quatro corcéis. Dois cocheiros montados na boleia a conduziam.
Conforme se aproximaram, pudemos ver uma cena pavorosa: dos quatro cavalos, apenas dois tinham cabeça. O sangue escorria vagarosamente pelos corpos cobertos de cortes abertos.
A carruagem diminuiu, parando em frente a nós. Moscas pousavam e voavam das feridas, e algumas delas tinham larvas. O cheiro horroroso da carne em decomposição fez o arroz de cuxá que tinha comido vir à minha garganta.
Um dos cocheiros tinha sido decapitado. O outro tinha a goela cortada, e sua camisa rota estava vermelha e molhada de sangue. Ambos pareciam escravos.
Zé fez menção de correr, mas o cocheiro degolado pegou o chicote. Deu uma chicotada no Zé e eu, por reflexo, me pus na frente, protegendo-me com meus braços cruzados no alto. Dois golpes laceraram meus membros e eu me encolhi de dor, caindo no chão. Zé ficou paralisado.
A carruagem era negra, desbotada. A iluminação da rua não deixava ver muitos detalhes. Todas as arestas eram cobertas por metal dourado, que estava descascado e enferrujado. Dentro dela, uma estranha luz começou a brilhar.
Zé me ajudou a levantar. Uma voz feminina e envelhecida nos chamou, e nos aproximamos. Um rosto descarnado, com vestes nobres, porém rasgadas, apareceu na janela. Assustamo-nos. O medo nos fez pensar em correr, mas o cocheiro já nos esperava com o chicote. Lembrei-me da dor que senti, os braços ainda ardendo, meu sangue pingando das mãos.
A mulher dentro da cabine fez um sinal para que nos acercássemos. Uma força nos empurrou para ela, malgrado nossa resistência. Resistir era, no mínimo, fútil.
Ela entregou uma vela ao Zé, que a recebeu com enorme relutância. Uma vela negra, acesa. Era a luz dentro da cabina. Aquele estranho vulto sumiu na escuridão do interior da carruagem.
O trote dos cavalos recomeçou. A carruagem fez uma meia volta, e entrou no cemitério do Gavião. Tirei as meias e fiz uns curativos de fortuna. Tivemos um problema sério para arrumar um taxista que quisesse nos trazer de volta ao porto, especialmente por causa das meias ensanguentadas nos braços. Chegamos ao navio quase às quatro da manhã.
Doc me olhava, espantado. Zé tinha se sentado novamente. Perguntei-lhe:
E aí, Doc? O que acha disso tudo?
Ele não respondeu de imediato. Suspirou. Depois riu e falou:
Tenente, o senhor está querendo me dar trote, né? Aposto que compraram uma vela preta e agora vão mostrar ela pra mim.
Na verdade, tentamos jogar a vela fora. Não conseguimos. Não podíamos largá-la, só passá-la de um para o outro e vice-versa — disse, apontando alternadamente entre Zé e mim mesmo —. Tentamos apagá-la, mas não pudemos. Nos faltava ar. O contramestre de serviço achou muito estranho quando entramos no navio daquele jeito, e segurando uma vela preta acesa! Zé se fingiu de bêbado e eu o ajudei a andar. Passei pelo pessoal de serviço e falei “nem queiram saber”, rindo. Peguei um pires na copa e fixei a vela nele e pus no canto do camarote. O resto você sabe.
E por que me chamaram aqui?
Lembra-se da lenda que a mulher da sorveteria contou?
Ele disse que sim. Perguntei-lhe se não faltava nenhum detalhe. Ele me respondeu que a mulher tinha falado que a vela, pela manhã, virava um osso.
Olhei para Zé. Ele pegou a mochila, e tirou o cobertor de dentro dela. Desenrolou-o e passou o fêmur ao Doc, que arregalou os olhos de tal forma, que pensei que fossem saltar das órbitas.
Preciso que me diga se isso é realmente um fêmur humano — disse, com uma calma que me causou estranheza. Doc titubeou, mas confirmou — Preciso também que não comente isso com ninguém.
E o que pretende fazer?
Vou ao cemitério. O túmulo dela fica lá. Vou deixar o osso nele.
Tenente, o senhor está falando sério mesmo?
Sim. Zé?
Que é?
Você vai à igreja matriz. Já que é católico, e eu não, você vai acompanhar a missa, e rezar com toda a sua fé pela alma dela.
Por quê?
Pelo que sabemos, Ana foi uma mulher que sofreu muito, mas que estava à frente de seu tempo. Ela não tinha escrúpulos, quando se tratava de dinheiro e poder. Se o osso é dela, gostaria que ela viesse fazer uma visita para pegá-lo de volta? Ou, sei lá: se ela nos deu uma vela... é... osso, por que não quereria algo de volta?
E você, Doc, bico calado, safo?
Pode deixar, Tenente!
Saí do cemitério e me encontrei com o Zé em frente à sorveteria. Somente um sorvete de nata-goiaba para nos acalmar.
Quase hora do rancho. Onde vamos almoçar?
Tô a fim de mais um arroz de cuxá. Vai?
Agora. Tá pagando?

Nem sonhando, camarada. Nem sonhando...

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Novo conto: A Namorada

Conto: A Namorada

Paulo. Meu nome é Paulo. Hoje já passei dos quarenta, quase chegando aos cinquenta. Mas eu vim aqui para falar da minha primeira namorada. Eu falo para todo mundo que minha primeira namorada foi aos quinze; conhecida de um amigo meu. Igreja católica. Não, não sou católico, mas era uma concentração de jovens bons, unidos por um ideal, que era fazer crisma. Não, eu não ia fazer crisma. Já disse: não sou católico.
Eu morei em Madureira. Dez anos. Não, no primeiro lado. O lado que o pessoal chama de “lado do Tem Tudo”. A churrascaria, sabe? Tudo bem: o quartel do Corpo de Bombeiros? Da Sendas? Rua Domingos Lopes? É, esse lado mesmo.
Eu morava perto da igreja de São Geraldo. Tinha catorze anos. Estava fazendo cursinho, porque queria fazer prova para cursar um bom segundo grau, já que não tinha dinheiro para pagar. Hoje eles chamam de Ensino Médio. Até ai, nada a ver com namorada. Vou chegar lá.
Nosso apartamento era térreo, no final do corredor. Minha mãe colocou uma porta de grade, com vidro, e transformou aquela área morta perto da porta num vestíbulo. Só que quando alguém entrava ou saía, aquela porta fazia um barulho terrível, porque as bandeiras com vidros eram frouxas; batiam nos ferros das molduras, e haja ruído!
Uma das coisas esquisitas que tínhamos em casa era um móvel de madeira: um banco, com encosto, mas que o assento era uma tampa para um compartimento. Era como se fosse uma arca na qual se pudesse sentar. Colocávamos livros, papelada, e quaisquer outras coisas que pudéssemos. Menos perecíveis, claro.
Sofarca. Sim, sofarca. Mistura de sofá com arca. É, você já tinha entendido, né? Era como eu chamava aquele móvel estranho. Sabe o que era melhor? Quando alguém se sentava ou subia nele, fazia um ruído ainda mais esquisito. Se eu souber fazer uma boa onomatopeia, seria alguma coisa como prrrooooc. Não era só um estalo de madeira: eram vários, juntos, seguidos, como se fosse um ronco. Prrrooooc! E o melhor: o sofarca fazia aquele prrrooooc sozinho. Não, não! Não era o calor, ou variação de temperatura que fazia a madeira estalar. Só o peso de uma ou mais pessoas juntas fazia isso.
Para fechar o circo das esquisitices, tínhamos na sala um carrinho de bebidas. De madeira, também. Duas rodas enormes, laterais. Dois andares. Cheio de destilados, e copos longos. Por que estou falando do carrinho? Porque de vez em quando os copos começavam a tilintar. Sozinhos. Sem vento, nem nada. Não havia obras próximas, nem gente passando, nem nada. Mas tilintava. Sozinho.
Uma vez, quando eu estava só em casa, a porta de vidro fez seus estrondos normais de abertura e fechamento. Umas três da tarde. Para variar, eu não tinha feito nenhuma das tarefas de casa que minha mãe tinha mandado. Ah, o início da adolescência... Desliguei rapidamente a televisão, e me deitei de bruços, fingindo que estava dormindo. Ouvi passos até o quarto onde eu estava. Uma presença física. A voz da minha irmã falando “coitado... coitado”. Os passos e a presença se afastando.
Tomei aquilo como ofensa, claro. Pulei dentro do quarto da minha irmã gritando, para dar-lhe um susto. Ninguém. Corria a casa toda. Nada. Corri de novo, olhando em cada lugar onde ela pudesse ter se escondido. Adivinhe: estava só. A única pessoa — viva, claro — era eu.
Voltei ao quarto, liguei a televisão. Prrrooooc! Levantei-me e fui olhar. Ninguém. Voltei. Prrrooooc! Olhei de novo. A casa toda. Nada, a não ser a cozinha — que não tinha iluminação por luz solar —, toda escura. Quando passei por ela, me arrepiei dos pés à cabeça.
Nem me lembro o que estava vendo na tevê. Não existia televisão por assinatura ainda; devia ser a sessão da tarde. Algo que passasse o tempo, e que me impedisse de lembrar das tarefas de casa que eu tanto detestava. Prrrooooc! Os copos tilintando, cada vez mais alto e rápido. Um vulto passou no corredor. Gritei do quarto mesmo:
Para de mexer nessa porra aí!
Parou. Que bom. Já estava ficando de saco cheio de andar a casa toda. Posso voltar a ver o meu filme tranquilam...
Vem cá... — uma voz feminina falou. É isso mesmo: uma voz feminina me chamou.
Levantei-me e fui para a cozinha, o caminho mais curto para a saída. Nem tentei pegar minha chave; uma jovem estava parada bem no meio. Eu conseguia ver a geladeira e parte da porta de saída por ela. Um pouco mais baixa que eu. Loura, bonita, formosa. Com roupas dos anos 60.
Q... Quem...
Mariana. Por que você está aqui? Cadê minha casa?
Eu moro aqui. Aqui é a minha casa.
Mas aqui era a minha casa! Cadê minha família?
Eu não sabia o que dizer a ela. Lembrei-me da minha mãe me dizendo que tinham demolido uma casa velha para construir o prédio. Só faltava ser a casa dela.
Ela começou a chorar. A princípio, baixinho, mas numa angústia crescente, e acabou soluçando com o rosto entre as mãos. Fui abraçá-la, mas meus braços a atravessaram. Ela viu. Entrou em desespero, perguntando como meus braços poderiam tê-la atravessado, e em que havia se tornado. Que loucura, não? Pois é.
Eu falei para ela que devia estar numa outra fase da vida. Ela, claro, quis saber que fase era essa. Eu disse a ela que devia ficar feliz, porque a vida continuava. Ela começou a se acalmar. Devia ter a mesma idade que eu. Lindos olhos azuis. Sumiu.
Fiquei ali na cozinha, naquela penumbra, tentando entender tudo o que tinha acontecido. Achava que eu nunca mais a veria, sei lá. Mas que ela era linda, ah, isso era! Parecia um anjo, com aqueles cabelos louros e encaracolados... E aqueles olhos? Pareciam duas bolas de gude azuis! Olhe, foi há tanto tempo; que tipo de comparação um garoto de catorze anos poderia fazer?
Não contei à minha mãe quando ela chegou. Muito menos à minha irmã. Pensariam que sou doido. De qualquer maneira, eu pensava que não a veria mais.
Um mês se passou. Nada de estrondos na porta de entrada. Nem de copos tilintando. Sem prrrooooc.
À noite, depois de estudar a matéria do cursinho e ver um pouco de tevê, fui dormir. Sonhei com Mariana. Sim, o nome dela era Mariana. Ela me disse. Como se diz por aí, sonhei a noite toda. Ela se despediu de mim com um beijo, e aquele foi o meu primeiro. É, loucura, eu sei: meu primeiro beijo foi num sonho, com uma garota fantasma. Hilário!
Quando acordei de manhã, eu estava excitado. Sim, bastante excitado. Entrei embaixo duma ducha gelada para me acalmar, mas confesso: mal podia esperar pela noite seguinte, quando poderia encontrar Mariana de novo.
No cursinho, as aulas passaram mais devagar que eu conseguia aturar. Tinha uma menina em quem eu estava de olho no cursinho; ela era de outra turma. A gente sempre se encontrava na hora do recreio. Recreio, não, intervalo. Adolescentes não têm recreio, tem intervalo.
Naquele intervalo, só saí da sala para beber uma água. Nem fui encontrar com mocinha que eu gostava. Só pensava na menina dos meus sonhos. Literalmente, Mariana era isso.
Nem sempre eu sonhava com Mariana. Mas quando sonhava, ah... Beijos, abraços, carinhos... Longas conversas, passeios de mãos dadas... E, claro, dois adolescentes com os hormônios em fúria, querendo descobrir mais sobre o que era o amor.
Na década de 80, as meninas se davam mais ao respeito do que se vê hoje em dia. Não tinha esse negócio de “ficar”, nem essas competições de quem pega mais quem. Bem, até tinha, mas eram os rapazes quem faziam isso. Agora, imagine na década de 60. Mesmo com toda a liberação feminina, havia garotas que tentavam se preservar, mas que, ainda assim, queriam experimentar.
Mariana era quem sempre me impedia de ir adiante, quando estávamos num, por assim dizer, esfrega mais quente. Pode-se dizer que ela me inspirou vários sonhos, digamos, molhados. Eu era louco por ela, e sabia que sentia o mesmo por mim. E eu queria mais, queria tê-la para mim, sonhava em construir uma vida ao lado dela. Casar, ter filhos, e... me dava conta de que isso era impossível. Como eu me casaria e constituiria família com um fantasma?
Muita gente diz que o amor é eterno. O meu provavelmente seria, de uma forma tão literal que me assustava. Eu estava apaixonado por alguém que, na prática, não existia, e que não seria capaz de me dar o que eu queria: um futuro.
Prrrooooc! Três e pouco da tarde, se me lembro bem. Copos tilintando. Mariana no meio da cozinha, a mesma roupa de sempre, linda como nunca. Seus olhos brilhavam. Meu coração, como sempre, acelerou ao ver aquela que o possuía.
Mariana? O que houve? Pensei que ia ver você mais tarde, nos sonhos. Sabe que aqui não posso te tocar e nem te abraçar.
Eu vim falar contigo, meu amor.
Amor? Eu? Você tá querendo dizer que me ama?
Sim. Eu amo você — ela declarou, abaixando a cabeça, envergonhada.
Mariana...
Oi?
Também te amo!
Que bom, meu amor! Eu... eu acho que já chegou a hora da gente se amar.
Mas Mariana, a gente já se ama...
Bobo. Eu quero dizer que se você tentar me fazer sua, eu não vou te impedir
Para um garoto de catorze, quase quinze anos ouvir aquilo, bom... Imagine como eu fiquei. Quase fui me deitar àquela hora, só para poder finalmente possuí-la. Eu queria muito saber o que significava fazer amor. O que era poder tocar uma garota intimamente, senti-la pronta para me receber... possuí-la e a ela me entregar. Toda a loucura e paixão de um amor adolescente, sem limites.
Eu não estava com sono, mas fui para cama. Fechei os olhos, me concentrando nas palavras e imagens de Mariana. Não demorou muito, e entrei num estado de torpor, nem dormindo, nem acordado.
Ela apareceu para mim. Estávamos num campo bonito, com flores e árvores que eu nunca tinha visto. Um lago azul, e montanhas ao fundo, encimadas por neve. Estava claro. Mariana se despiu, e pude ver como era maravilhosamente gostosa. Entrou no lago, soltando um “ui”, ao entrar em contato com a água. Seus mamilos imediatamente se enrijeceram.
Não pensei duas vezes: tirei minhas roupas e mergulhei no lago, emergindo junto a ela. Nós nos beijamos, e começamos a nos amar. Nunca tinha sentido aquilo. Mariana gemia e me instigava a ir mais rápido, e me chamava de nomes que eu jamais pensaria que uma garota tímida diria. Comecei a chamá-la de tudo o que me vinha na cabeça, e ambos explodimos num orgasmo louco.
Saímos do lago, ainda nus, e nos deitamos à beira dele. Mariana se aninhou em mim, pousando a cabecinha no meu peito. Não tínhamos culpa, apenas o amor que sentíamos um pelo outro. Acordei.
Sentia-me diferente. Tinha cruzado a fronteira entre ser um adolescente e saber o que é ser um homem. É, hoje eu sei que não é só isso. Escute o resto da estória.
Acordei no meio da noite. Eu estava com fome. Minha família tinha viajado, e eu tinha ficado, porque teria prova no cursinho para tentar uma bolsa.
Eu ainda estava ofegante, mas me sentindo ótimo! Não tinha muita coisa na geladeira, só um pão de forma e queijo. Leite também. Peguei uma faca para cortar o queijo, e fazer um sanduíche. Do jeito que eu estava com fome, pão com queijo e um copo de leite seriam um banquete para um rei... até que ouvi o sofarca fazer aquele estalo de novo. E os copos tilintarem.
Mariana apareceu atrás de mim, causando-me um sobressalto. Quase me cortei com a faca!
Meu amor, o que houve?
Paulo, você me deixou sozinha lá, depois que a gente fez amor...
Oh, meu bem... eu acordei...
Eu senti sua falta e vim aqui. Eu quero você do meu lado... para sempre!
Mas Mariana... Nós estamos em mundos diferentes... Você sabe que eu quero ter uma família um dia.
Mariana pareceu não gostar nada. Ela disse:
Você... me... usou?
O que é isso, Mariana? Você sabe que sou louco por você!
Então, vamos viver nosso amor eternamente! Vem!
Mariana, eu nem completei quinze anos! Ainda tenho muito que viver. Não quero morrer agora!
Seu safado! Você me enganou, só para me comer! Você vai se arrepender!
E aquela linda menina loura e de olhos azuis se tornou repentinamente mais alta que eu. Suas roupas deram lugar a escamas escuras, e aquele lindo rostinho se tornou um horroroso réptil, mistura de gente e lagarto.
Garras negras seguraram o meu pescoço, arranhando e me sufocando. Uma risada gutural, que soava mais como um grupo de grunhidos, me gelou o coração. Calafrios subiam e desciam loucamente pela coluna. O que quer que fosse aquilo, me levantou do chão, até eu quase bater com a cabeça no teto.
Seu puto! Ficou de amorzinho, agora, vai ficar preso para sempre!
Ainda me segurando pelo pescoço, me baixou próximo à pia. Mandou que eu pegasse a faca. Falei que não. Mas aquele monstro fez alguma coisa comigo, e peguei a faca.
Agora, apunhale seu coração!
Não — gritei, mas encostei a faca no meu peito, lutando com todas as minhas forças contra isso. Comecei a sentir a dor da ponta penetrando minha carne.
Meu Deus, perdão pelos meus erros! Por favor, me receba!
O lagarto monstruoso soltou um grito, e me jogou em cima do fogão. É. Fiquei com essa cicatriz aqui, no braço esquerdo. Ele sumiu numa nuvem de fumaça, soltando todos os palavrões que eu conhecia, e outros que nunca tinha ouvido antes.
Sentei-me no chão, sentindo o pescoço arder com os arranhões. Meu corpo todo doía, e minha camisa tinha uma pequena poça de sangue. Levantei-me com alguma dificuldade, joguei o leite e o resto do sanduíche fora, e me sentei para ver televisão. Não conseguiria dormir.

Mais alguns meses, e passei para o Colégio Naval. Conheci minha primeira namorada — viva — e a vida seguiu em frente.