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quarta-feira, 2 de julho de 2014

Novo conto: A Namorada

Conto: A Namorada

Paulo. Meu nome é Paulo. Hoje já passei dos quarenta, quase chegando aos cinquenta. Mas eu vim aqui para falar da minha primeira namorada. Eu falo para todo mundo que minha primeira namorada foi aos quinze; conhecida de um amigo meu. Igreja católica. Não, não sou católico, mas era uma concentração de jovens bons, unidos por um ideal, que era fazer crisma. Não, eu não ia fazer crisma. Já disse: não sou católico.
Eu morei em Madureira. Dez anos. Não, no primeiro lado. O lado que o pessoal chama de “lado do Tem Tudo”. A churrascaria, sabe? Tudo bem: o quartel do Corpo de Bombeiros? Da Sendas? Rua Domingos Lopes? É, esse lado mesmo.
Eu morava perto da igreja de São Geraldo. Tinha catorze anos. Estava fazendo cursinho, porque queria fazer prova para cursar um bom segundo grau, já que não tinha dinheiro para pagar. Hoje eles chamam de Ensino Médio. Até ai, nada a ver com namorada. Vou chegar lá.
Nosso apartamento era térreo, no final do corredor. Minha mãe colocou uma porta de grade, com vidro, e transformou aquela área morta perto da porta num vestíbulo. Só que quando alguém entrava ou saía, aquela porta fazia um barulho terrível, porque as bandeiras com vidros eram frouxas; batiam nos ferros das molduras, e haja ruído!
Uma das coisas esquisitas que tínhamos em casa era um móvel de madeira: um banco, com encosto, mas que o assento era uma tampa para um compartimento. Era como se fosse uma arca na qual se pudesse sentar. Colocávamos livros, papelada, e quaisquer outras coisas que pudéssemos. Menos perecíveis, claro.
Sofarca. Sim, sofarca. Mistura de sofá com arca. É, você já tinha entendido, né? Era como eu chamava aquele móvel estranho. Sabe o que era melhor? Quando alguém se sentava ou subia nele, fazia um ruído ainda mais esquisito. Se eu souber fazer uma boa onomatopeia, seria alguma coisa como prrrooooc. Não era só um estalo de madeira: eram vários, juntos, seguidos, como se fosse um ronco. Prrrooooc! E o melhor: o sofarca fazia aquele prrrooooc sozinho. Não, não! Não era o calor, ou variação de temperatura que fazia a madeira estalar. Só o peso de uma ou mais pessoas juntas fazia isso.
Para fechar o circo das esquisitices, tínhamos na sala um carrinho de bebidas. De madeira, também. Duas rodas enormes, laterais. Dois andares. Cheio de destilados, e copos longos. Por que estou falando do carrinho? Porque de vez em quando os copos começavam a tilintar. Sozinhos. Sem vento, nem nada. Não havia obras próximas, nem gente passando, nem nada. Mas tilintava. Sozinho.
Uma vez, quando eu estava só em casa, a porta de vidro fez seus estrondos normais de abertura e fechamento. Umas três da tarde. Para variar, eu não tinha feito nenhuma das tarefas de casa que minha mãe tinha mandado. Ah, o início da adolescência... Desliguei rapidamente a televisão, e me deitei de bruços, fingindo que estava dormindo. Ouvi passos até o quarto onde eu estava. Uma presença física. A voz da minha irmã falando “coitado... coitado”. Os passos e a presença se afastando.
Tomei aquilo como ofensa, claro. Pulei dentro do quarto da minha irmã gritando, para dar-lhe um susto. Ninguém. Corria a casa toda. Nada. Corri de novo, olhando em cada lugar onde ela pudesse ter se escondido. Adivinhe: estava só. A única pessoa — viva, claro — era eu.
Voltei ao quarto, liguei a televisão. Prrrooooc! Levantei-me e fui olhar. Ninguém. Voltei. Prrrooooc! Olhei de novo. A casa toda. Nada, a não ser a cozinha — que não tinha iluminação por luz solar —, toda escura. Quando passei por ela, me arrepiei dos pés à cabeça.
Nem me lembro o que estava vendo na tevê. Não existia televisão por assinatura ainda; devia ser a sessão da tarde. Algo que passasse o tempo, e que me impedisse de lembrar das tarefas de casa que eu tanto detestava. Prrrooooc! Os copos tilintando, cada vez mais alto e rápido. Um vulto passou no corredor. Gritei do quarto mesmo:
Para de mexer nessa porra aí!
Parou. Que bom. Já estava ficando de saco cheio de andar a casa toda. Posso voltar a ver o meu filme tranquilam...
Vem cá... — uma voz feminina falou. É isso mesmo: uma voz feminina me chamou.
Levantei-me e fui para a cozinha, o caminho mais curto para a saída. Nem tentei pegar minha chave; uma jovem estava parada bem no meio. Eu conseguia ver a geladeira e parte da porta de saída por ela. Um pouco mais baixa que eu. Loura, bonita, formosa. Com roupas dos anos 60.
Q... Quem...
Mariana. Por que você está aqui? Cadê minha casa?
Eu moro aqui. Aqui é a minha casa.
Mas aqui era a minha casa! Cadê minha família?
Eu não sabia o que dizer a ela. Lembrei-me da minha mãe me dizendo que tinham demolido uma casa velha para construir o prédio. Só faltava ser a casa dela.
Ela começou a chorar. A princípio, baixinho, mas numa angústia crescente, e acabou soluçando com o rosto entre as mãos. Fui abraçá-la, mas meus braços a atravessaram. Ela viu. Entrou em desespero, perguntando como meus braços poderiam tê-la atravessado, e em que havia se tornado. Que loucura, não? Pois é.
Eu falei para ela que devia estar numa outra fase da vida. Ela, claro, quis saber que fase era essa. Eu disse a ela que devia ficar feliz, porque a vida continuava. Ela começou a se acalmar. Devia ter a mesma idade que eu. Lindos olhos azuis. Sumiu.
Fiquei ali na cozinha, naquela penumbra, tentando entender tudo o que tinha acontecido. Achava que eu nunca mais a veria, sei lá. Mas que ela era linda, ah, isso era! Parecia um anjo, com aqueles cabelos louros e encaracolados... E aqueles olhos? Pareciam duas bolas de gude azuis! Olhe, foi há tanto tempo; que tipo de comparação um garoto de catorze anos poderia fazer?
Não contei à minha mãe quando ela chegou. Muito menos à minha irmã. Pensariam que sou doido. De qualquer maneira, eu pensava que não a veria mais.
Um mês se passou. Nada de estrondos na porta de entrada. Nem de copos tilintando. Sem prrrooooc.
À noite, depois de estudar a matéria do cursinho e ver um pouco de tevê, fui dormir. Sonhei com Mariana. Sim, o nome dela era Mariana. Ela me disse. Como se diz por aí, sonhei a noite toda. Ela se despediu de mim com um beijo, e aquele foi o meu primeiro. É, loucura, eu sei: meu primeiro beijo foi num sonho, com uma garota fantasma. Hilário!
Quando acordei de manhã, eu estava excitado. Sim, bastante excitado. Entrei embaixo duma ducha gelada para me acalmar, mas confesso: mal podia esperar pela noite seguinte, quando poderia encontrar Mariana de novo.
No cursinho, as aulas passaram mais devagar que eu conseguia aturar. Tinha uma menina em quem eu estava de olho no cursinho; ela era de outra turma. A gente sempre se encontrava na hora do recreio. Recreio, não, intervalo. Adolescentes não têm recreio, tem intervalo.
Naquele intervalo, só saí da sala para beber uma água. Nem fui encontrar com mocinha que eu gostava. Só pensava na menina dos meus sonhos. Literalmente, Mariana era isso.
Nem sempre eu sonhava com Mariana. Mas quando sonhava, ah... Beijos, abraços, carinhos... Longas conversas, passeios de mãos dadas... E, claro, dois adolescentes com os hormônios em fúria, querendo descobrir mais sobre o que era o amor.
Na década de 80, as meninas se davam mais ao respeito do que se vê hoje em dia. Não tinha esse negócio de “ficar”, nem essas competições de quem pega mais quem. Bem, até tinha, mas eram os rapazes quem faziam isso. Agora, imagine na década de 60. Mesmo com toda a liberação feminina, havia garotas que tentavam se preservar, mas que, ainda assim, queriam experimentar.
Mariana era quem sempre me impedia de ir adiante, quando estávamos num, por assim dizer, esfrega mais quente. Pode-se dizer que ela me inspirou vários sonhos, digamos, molhados. Eu era louco por ela, e sabia que sentia o mesmo por mim. E eu queria mais, queria tê-la para mim, sonhava em construir uma vida ao lado dela. Casar, ter filhos, e... me dava conta de que isso era impossível. Como eu me casaria e constituiria família com um fantasma?
Muita gente diz que o amor é eterno. O meu provavelmente seria, de uma forma tão literal que me assustava. Eu estava apaixonado por alguém que, na prática, não existia, e que não seria capaz de me dar o que eu queria: um futuro.
Prrrooooc! Três e pouco da tarde, se me lembro bem. Copos tilintando. Mariana no meio da cozinha, a mesma roupa de sempre, linda como nunca. Seus olhos brilhavam. Meu coração, como sempre, acelerou ao ver aquela que o possuía.
Mariana? O que houve? Pensei que ia ver você mais tarde, nos sonhos. Sabe que aqui não posso te tocar e nem te abraçar.
Eu vim falar contigo, meu amor.
Amor? Eu? Você tá querendo dizer que me ama?
Sim. Eu amo você — ela declarou, abaixando a cabeça, envergonhada.
Mariana...
Oi?
Também te amo!
Que bom, meu amor! Eu... eu acho que já chegou a hora da gente se amar.
Mas Mariana, a gente já se ama...
Bobo. Eu quero dizer que se você tentar me fazer sua, eu não vou te impedir
Para um garoto de catorze, quase quinze anos ouvir aquilo, bom... Imagine como eu fiquei. Quase fui me deitar àquela hora, só para poder finalmente possuí-la. Eu queria muito saber o que significava fazer amor. O que era poder tocar uma garota intimamente, senti-la pronta para me receber... possuí-la e a ela me entregar. Toda a loucura e paixão de um amor adolescente, sem limites.
Eu não estava com sono, mas fui para cama. Fechei os olhos, me concentrando nas palavras e imagens de Mariana. Não demorou muito, e entrei num estado de torpor, nem dormindo, nem acordado.
Ela apareceu para mim. Estávamos num campo bonito, com flores e árvores que eu nunca tinha visto. Um lago azul, e montanhas ao fundo, encimadas por neve. Estava claro. Mariana se despiu, e pude ver como era maravilhosamente gostosa. Entrou no lago, soltando um “ui”, ao entrar em contato com a água. Seus mamilos imediatamente se enrijeceram.
Não pensei duas vezes: tirei minhas roupas e mergulhei no lago, emergindo junto a ela. Nós nos beijamos, e começamos a nos amar. Nunca tinha sentido aquilo. Mariana gemia e me instigava a ir mais rápido, e me chamava de nomes que eu jamais pensaria que uma garota tímida diria. Comecei a chamá-la de tudo o que me vinha na cabeça, e ambos explodimos num orgasmo louco.
Saímos do lago, ainda nus, e nos deitamos à beira dele. Mariana se aninhou em mim, pousando a cabecinha no meu peito. Não tínhamos culpa, apenas o amor que sentíamos um pelo outro. Acordei.
Sentia-me diferente. Tinha cruzado a fronteira entre ser um adolescente e saber o que é ser um homem. É, hoje eu sei que não é só isso. Escute o resto da estória.
Acordei no meio da noite. Eu estava com fome. Minha família tinha viajado, e eu tinha ficado, porque teria prova no cursinho para tentar uma bolsa.
Eu ainda estava ofegante, mas me sentindo ótimo! Não tinha muita coisa na geladeira, só um pão de forma e queijo. Leite também. Peguei uma faca para cortar o queijo, e fazer um sanduíche. Do jeito que eu estava com fome, pão com queijo e um copo de leite seriam um banquete para um rei... até que ouvi o sofarca fazer aquele estalo de novo. E os copos tilintarem.
Mariana apareceu atrás de mim, causando-me um sobressalto. Quase me cortei com a faca!
Meu amor, o que houve?
Paulo, você me deixou sozinha lá, depois que a gente fez amor...
Oh, meu bem... eu acordei...
Eu senti sua falta e vim aqui. Eu quero você do meu lado... para sempre!
Mas Mariana... Nós estamos em mundos diferentes... Você sabe que eu quero ter uma família um dia.
Mariana pareceu não gostar nada. Ela disse:
Você... me... usou?
O que é isso, Mariana? Você sabe que sou louco por você!
Então, vamos viver nosso amor eternamente! Vem!
Mariana, eu nem completei quinze anos! Ainda tenho muito que viver. Não quero morrer agora!
Seu safado! Você me enganou, só para me comer! Você vai se arrepender!
E aquela linda menina loura e de olhos azuis se tornou repentinamente mais alta que eu. Suas roupas deram lugar a escamas escuras, e aquele lindo rostinho se tornou um horroroso réptil, mistura de gente e lagarto.
Garras negras seguraram o meu pescoço, arranhando e me sufocando. Uma risada gutural, que soava mais como um grupo de grunhidos, me gelou o coração. Calafrios subiam e desciam loucamente pela coluna. O que quer que fosse aquilo, me levantou do chão, até eu quase bater com a cabeça no teto.
Seu puto! Ficou de amorzinho, agora, vai ficar preso para sempre!
Ainda me segurando pelo pescoço, me baixou próximo à pia. Mandou que eu pegasse a faca. Falei que não. Mas aquele monstro fez alguma coisa comigo, e peguei a faca.
Agora, apunhale seu coração!
Não — gritei, mas encostei a faca no meu peito, lutando com todas as minhas forças contra isso. Comecei a sentir a dor da ponta penetrando minha carne.
Meu Deus, perdão pelos meus erros! Por favor, me receba!
O lagarto monstruoso soltou um grito, e me jogou em cima do fogão. É. Fiquei com essa cicatriz aqui, no braço esquerdo. Ele sumiu numa nuvem de fumaça, soltando todos os palavrões que eu conhecia, e outros que nunca tinha ouvido antes.
Sentei-me no chão, sentindo o pescoço arder com os arranhões. Meu corpo todo doía, e minha camisa tinha uma pequena poça de sangue. Levantei-me com alguma dificuldade, joguei o leite e o resto do sanduíche fora, e me sentei para ver televisão. Não conseguiria dormir.

Mais alguns meses, e passei para o Colégio Naval. Conheci minha primeira namorada — viva — e a vida seguiu em frente.

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