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terça-feira, 18 de novembro de 2014

Novo conto: Drama

Drama

Depois que perdi minha família, a depressão quase se apoderou de mim. A tristeza era minha companheira diária, e não raro eu me surpreendia chorando a falta deles. Mesmo as brigas que tínhamos me faziam falta, e as consultas com neurologistas acabavam sempre com a recomendação de algum remédio que me entorpecia os sentidos, deixando-me sonolento, envolto numa modorra de dar dó.
Uma amiga médica, no entanto, tomada de compaixão e conhecedora do eu antes das tragédias pessoais, inscreveu-me num programa inovador, que pesquisava curas para a depressão. Passei a tomar um medicamento que realmente não me afetava em nada. Nem na depressão!
Com as consultas e um pouco de orientação, voltei a fazer exercícios, a ocupar a minha mente, e então pude sentir os benefícios do novo remédio. Realmente funcionava muito bem... bem até demais! Comecei a desenvolver novas capacidades, as quais mantive em segredo. A droga experimental me deu a habilidade da telecinese, além da projeção emocional.
A princípio, eu conseguia mexer pequenas bolinhas de papel e fazer com que as pessoas à minha volta tivessem sutis variações de humor. Até aí, nada demais, apesar de não ser algo exatamente normal.
Um dia, porém, ao sair atrasado para o trabalho, o carro não quis pegar. Tentei algumas vezes, sem sucesso, até que, num rompante, soltei um berro e bati com as duas mãos no volante: o carro foi imediata e rapidamente arrastado dois metros adiante, quase batendo noutro que estava parado na vaga à frente. Percebi, então, que minhas emoções influenciavam nos meus ditos poderes, e passei a praticá-los em lugares desertos.
Ao ser capaz de levantar carros com facilidade, movendo-os de um lado para o outro, perguntei-me: “será que posso me mover”? A resposta foi, claro, uma experiência que começou com um formigamento que se espalhou como um raio pelo meu corpo, e eu fui capaz de voar! Sim, agora eu realizava meu sonho de criança, conseguia voar sem nenhum aparelho!
Voltei para casa e, ao apontar o carro para a garagem, fui surpreendido com uma arma na minha cabeça. Soltei lentamente as mãos do volante, levantando-as, e olhei na direção do ladrão, que começou a fungar. Ato contínuo, abaixou a arma, chorando, e sentou-se no meio-fio, maldizendo aquela vida e sua sina. A arma, sozinha, levitou de sua mão e se desmontou, para seu espanto. Levantando-se e enxugando suas lágrimas, ele sumiu, se benzendo, para nunca mais aparecer. Deu um pequeno sorriso e entrei tranquilamente na garagem.
À noite, na televisão, anunciaram que construiriam um acelerador de partículas no interior do Nordeste, e o país, que já estava dividido, ficou ainda mais partido. Quase todos os segmentos da sociedade, independentemente de viés ideológico, classe social e grau de instrução, gritaram que o país tinha problemas muito mais sérios a tratar. O governo, no entanto, querendo fazer parte de uma nova iniciativa para o desenvolvimento de uma fonte de energia limpa e duradoura, achou que seria bom investir o que lhe restava de caixa no projeto.
O grande problema foi que não conseguiam trabalhadores para a faraônica obra, visto que a população, em grande parte, era coberta por programas assistenciais do governo; sua única fonte de renda e, provavelmente, de alimentação. O emprego na construção do acelerador lhes daria melhores condições, porém, se aceitassem o trabalho, seriam automaticamente desligados.
Foi então que o governo lançou uma campanha por todo o país, chamando e recrutando trabalhadores de diversas áreas, a fim de que pudesse tocar o projeto adiante. Dadas as proporções gigantescas do projeto, em praticamente todas as áreas havia necessidade de pessoal.
Como não tinha mais nenhuma ligação com minha querida e maravilhosa cidade, decidi tentar a vida naquelas paragens. Já conhecia o Nordeste, seu clima ensolarado e pessoas hospitaleiras, e melhor: ainda tinha parentes lá.
A localização do acelerador era numa cidadezinha a pouco mais de meia hora de carro de onde meus parentes moravam, na capital do estado, e seria ótimo conseguir um lugar para morar lá. Trabalho e praia, tudo que um carioca marinheiro precisa para crescer forte e feliz. E com sol o ano todo!
Seis anos e vários desvios de verba depois, o acelerador estava pronto para o primeiro teste. Coincidentemente, a capital e a cidadezinha quase não tinham mais crime. Um misterioso homem voador assustava os ladrões, fazendo com que eles chorassem como crianças, ou mesmo rissem até molharem as calças. Por fazer aflorar as emoções de uma maneira estupidamente intensa, a imprensa começou a chamá-lo de “Drama”, um nome que pegou.
Drama, claro, era eu. Um símbolo. Não tinha uniforme. Usava roupas e sapatos comuns, mas aparecia de onde menos se esperava. Para manter a identidade secreta, usava uma balaclava preta, e era capaz de dominar grupos de bandidos, fazendo com que se entregassem, aos prantos, à polícia. As cadeias locais começaram a sofrer de superlotação...
Eu trabalhava na administração do projeto, e fui convidado para assistir ao teste. Os cientistas puderam trazer suas famílias.
Duas equipes saíram em carrinhos elétricos, desses de campo de golfe, para verificar se havia alguém, antes que os poderosos ímãs fossem ligados, dando início à aceleração. Uma delas foi para o anel maior, enquanto a outra percorria o menor. Cada vez que passavam por uma seção, as portas estanques eram hermeticamente fechadas.
Tudo pronto, hora de começar. Uma das esposas dos cientistas deu por falta de seu pequeno, e todos começamos a procurá-lo pela ampla sala de controle. O tempo passava, os procedimentos de acionamento eram cumpridos, e a angústia daquela mãe aumentava. Sensibilizado, projetava calma em seus sentimentos, mas o instinto materno era forte demais. Aliás, como deve ser.
Gritos interromperam meus pensamentos: era um dos cientistas operadores, apontando para um dos monitores. Olhamos para ele, e imagem aterrorizou-nos a todos, sem exceção: o pequeno tinha se escondido num dos corredores do anel maior, e agora batia na porta, pedindo para sair.
Para piorar as coisas, ele havia mexido numa das válvulas de resfriamento do condutor secundário, o que causaria uma explosão com consequências que ninguém sabia ao certo quais seriam. Nada para se preocupar, bastava apenas apertar o botão de parada de emergência, esperar as partículas pararem, e ir buscar o garotinho. Seria ótimo, se a parada de emergência não falhasse miseravelmente.
Os berros de socorro da mãe se juntaram aos uivos da sirene de alerta de acionamento, misturando-se ao burburinho das pessoas que não sabiam o que fazer. Aproveitando-me da atenção que estava concentrada no monitor, tirei a camisa social que usava, ficando apenas com uma camiseta branca, e vesti a balaclava. Voei da sala, arrebentando as portas pelo caminho, o mais rápido que podia.
Quando cheguei ao menininho, ele chorava pela mãe, mas me reconheceu, chamando-me de “Dama”. Tudo bem, nem todos conseguem falar “Drama”, principalmente se nem falam direito ainda.
As luzes estroboscópicas vermelhas giravam no ritmo das sirenes, encimadas apenas pelo zumbido intermitente e crescente do acelerador. Tentei pegar o menino para sair dali, mas o campo magnético puxou-me pela fivela do cinto, prendendo-me de barriga ao tubo condutor principal. Não conseguia me mover, muito menos tirar o cinto!
Uma voz no comunicador da parede gritava para que eu saísse dali, pois tudo estava prestes a ir pelos ares. Fiz o garotinho flutuar e o enviei de volta à sala, puxando todas as portas que tinha arrombado para perto da seção onde eu estava. Depois, não me lembro de mais nada.
Acordei num leito de hospital, sem saber direito onde estava. Sabia que já tinha estado naquele lugar, mas não me lembrava onde era. Olhei pela janela, e vi uma parte da minha cidade natal. Cidade natal? Rio de Janeiro? Mas eu estava no Nordeste até bem pouco tempo...
Olhei em volta e vi a minha amiga médica sentada numa poltrona, dormindo. A porta do quarto entreaberta, e um policial de cada lado. As fardas da Polícia Militar do Rio confirmavam minha suspeita.
Chamei minha amiga, que acordou. Sendo seu paciente, dava a ela o privilégio de entrar e sair quando queria. Ela ficou feliz em me ver, mas a interrompi; queria saber como eu tinha ido parar ali. Soube por ela que tinha salvo o garotinho e todos os que se encontravam no raio destrutivo da explosão do acelerador. Fiquei com mais de cinquenta por cento do corpo queimado, e quando viram que eu era marinheiro, enviaram-me de volta para o hospital da Marinha, no Rio de Janeiro. Fui direto para a Ala de Queimados, e lá permaneci em coma por quase um mês.
Quis saber sobre o motivo dos policiais na porta. Ela me disse que havia dois: com a explosão, a identidade secreta de Drama havia sido revelada, e eu seria condenado por fazer justiça com as próprias mãos; e os bandidos, sabendo quem os combatia eficazmente, não hesitariam em me eliminar. Eu podia voar, desmontar armas e fazer criminosos se entregarem à polícia dançando quadrilha de São João, mas não era invulnerável.
Ser condenado por fazer o bem... Só mesmo neste país! Eu nunca tinha encostado a mão num meliante, e fazia com que eles se entregassem às autoridades competentes. Portanto, não era, exatamente, justiça com as próprias mãos. Eu me tornava mais um incompreendido...
Comecei a sentir muita dor, e minha amiga chamou a enfermeira, enquanto aumentava a dose de morfina do meu soro. Dormi.
Acordei sozinho, de noite, e tentei usar meus poderes. Ao fazer o esforço mental, todo o meu corpo respondeu com uma dor pungente, como se várias espadas tentassem me atravessar. Melhor começar com alguma coisa simples... o copo de plástico vazio em cima do criado-mudo! Consegui movê-lo, mas senti muita dor. Vou esperar melhorar. Preciso ao menos tentar me sentar... nada. Dor demais. Durmo novamente.
Acordo com o enfermeiro me dizendo que virá me dar um banho mais tarde, para tirar a pele morta e enrugada. Ele me diz que “vai doer um pouquinho”. Em toda a minha experiência de vida, sempre que alguém da área de Saúde me disse que doeria “um pouquinho”, é porque arrancariam o meu couro, ou coisa parecida. Preparei-me para o pior.
No dia seguinte, ainda com os novos curativos e agradecendo a Deus pela bendita morfina, vejo minha amiga médica novamente. Fico feliz com aquela presença feminina, com seu jeito de menina, e rapidamente me lembro de que ela é casada, e tem duas filhinhas lindas. Não me permito pensar mais nada, só tento projetar mais alegria em sua mente. Consigo, mas sou parado pela dor no corpo inteiro. Essa droga não vai passar?
Ela me cumprimenta, eu lhe dou um polido “bom dia”, me viro para os policiais do lado de fora, e os cumprimento também. Um deles me olha e sorri, desejando-me um bom dia, levando uma imediata reprimenda do outro.
Minha amiga diz que quer me fazer uma pergunta, mas não sabe como. Eu lhe digo que não tenho nada a lhe esconder, e que pode perguntar. Ela, então, me olha nos olhos e me pergunta como foi que desenvolvi poderes, transformando-me em “Drama”. Minha resposta não poderia ser outra: tinha sido o remédio, claro.
Ela contorna a cama. Olha pela janela e volta a me encarar. Solta um longo suspiro, e fala que não sabe como vai me dizer o que precisa me contar. Eu me ajeito na cama, a morfina quase não segura a dor. Ela me diz que o remédio jamais poderia ter me causado isso. Eu lhe pergunto o que poderia ter causado, se não fosse o remédio? E as centenas de bandidos presos? Os resgates miraculosos? E as melhorias na segurança das cidades onde eu atuava? Eu voava e manipulava objetos mentalmente, vai me dizer que não tinha superpoderes?
Ela me conta, então, o que quase me faz parar o coração: faço parte do grupo de controle. Desde que comecei o tratamento, há mais de seis anos, que só tomo placebos!

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