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quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Novo conto: Fogos



É, eu me lembro bem quando comecei a conversar comigo mesmo, como faço agora. Foi logo depois de eu ter me tornado amargo e rancoroso. Solitário. Eu tive família, sabia? Claro que sabia! Estou falando comigo mesmo...
O mundo virou um lugar inabitável, é tudo uma merda, e eu peço todos os dias para Deus acabar comigo. Quero rever minha família. Paradoxalmente, procuro desesperadamente sobreviver nesse “admirável mundo novo”.
Eu me lembro de quando os fogos pararam de falar. Os fogos, porra, não se lembra? Não me lembro? Essa coisa de falar comigo mesmo me confunde, às vezes.
Fogos-fátuos sempre falaram. Nunca descobriram uma razão científica para isso. Os que vinham de pântanos eram os puros, mas só uivavam, rugiam ou assoviavam canções. Algumas sem nexo, outras transformadas em sinfonias pelos nossos compositores.
Já os que surgiam dos túmulos ditavam cartas, poemas, ou mesmo davam discursos. Alguns deles até permitiam diálogos, respondendo a perguntas e travando discussões, porém, nunca acaloradas. Todos sabíamos que não era a personalidade do cadáver que ali se encontrava, pois as ideias eram as mais variadas. Até divergiam ao extremo oposto da opinião da pessoa falecida, com vozes totalmente diferentes.
Um fogo-fátuo por vezes assumia uma voz feminina num túmulo masculino; o contrário também se dava. Eram manifestações de entidades inteligentes. Quando se perguntava a eles o que eram, ou quem tinham sido, não respondiam. Nunca nos garantiram a vida após a morte.
Mas os fogos se calaram antes de uma eleição. Uma grande “festa da democracia”, os imbecis diziam. “É o auge da democracia”, outros berravam. Mas eu sabia. Alguma coisa estava para acontecer, e aconteceu mesmo. Eu esperava que as coisas fossem difíceis, mas não pensava que seriam o fim do mundo.
Era eleição. Depois da campanha mais baixa e torpe de todos os tempos, um dos partidos ganhou, quebrando décadas de hegemonia do que governava. Mesmo com as fraudes eleitorais, já conhecidas, não houve jeito: tiveram de entregar o poder aos adversários de tantos anos.
Porém, grupos que apoiavam a situação tinham passado toda a campanha dizendo que, se perdessem, haveria guerra. Eu pensava que seriam greves, pequenas sabotagens aqui e ali, coisa que passaria depois do primeiro ano. O normal de sempre. Mas eu sabia que seria diferente. Eu sentia.
Antes de sair, o “partidão”, como se referiam a ele, orquestrou várias ações que tornariam nossas vidas mais difíceis. Retiraram boa parte das unidades militares das fronteiras, permitindo que drogas e armas entrassem livremente, e abastecessem o crime nas várias favelas das capitais e cidades maiores. Quanto mais lucro do tráfico, mais dinheiro para treinamentos e armas.
Aceitaram dezenas de milhares de imigrantes, legalizando-os automaticamente, e os colocaram junto às favelas. Muitos eram ex-integrantes das forças armadas de seus países de origem, bem treinados e preparados no uso de armas e combate corpo a corpo.
Concederam vistos a quaisquer habitantes de países notoriamente conhecidos por abrigarem grupos terroristas. Muitos fugiram de seus países de origem, procurando uma terra pacífica. Outros vieram ajudar a acabar com o futuro, trazendo seu conhecimento em terrorismo e guerrilha urbana.
E aí, começou: grupos simpatizantes aos perdedores começaram a achacar não somente os notoriamente partidários dos vencedores, mas qualquer um que não os apoiasse. A princípio, eram somente ataques verbais, depois, houve uma escalada da violência, e a polícia começou a intervir.
Os policiais deixaram de conseguir controlar as arruaças quando grupos fortemente armados começaram a tomar parte nelas. Muitas mortes foram registradas dos dois lados, e as forças armadas também foram chamadas, para garantir a lei e a ordem. Foi nesse momento que minha vida começou a ruir.
Não, cara, nada disso! Olhe só: eu estava indo à padaria com meus dois filhos. É, um adolescente, e o outro pequeno. Estava feliz porque começaria a aprender a ler e escrever no ano seguinte.
Ao voltarmos, nos deparamos com um grupo de partidários. “Lutadores da Liberdade”, se chamavam. Perguntaram-nos sobre quem apoiávamos. Disse-lhes que não apoiava ninguém, e que só queria viver minha vida em paz. “Não queremos problemas”, falei.
Eu e meu filho mais velho tentamos lutar com eles quando avançaram em nossa direção, com os olhos injetados de sangue. Conseguimos nocautear uns quatro, mas eram muitos, e acabamos presos. Ali mesmo, na calçada, cortaram os tendões dos braços e pernas do meu filho adolescente, transformando-o num boneco ensanguentado que urrava de dor. Mandaram-no se calar, ou fariam com que silenciasse de vez.
Gritei que faria o que quisessem, mas um dos bandidos que fazia a segurança do grupo cortou-lhe o pescoço com uma katana, fazendo com que se engasgasse em seu próprio sangue. Daí, viraram-se para meu filho mais novo e o pegaram, segurando seus quatro membros, puxando cada um numa direção. A cada estalo dos ossos saindo das articulações, uma rachadura em minh'alma, já despedaçada. Por fim, o bandido pegou sua espada e esquartejou meu pequeno. “Tenha uma boa vida”, me disseram, e foram embora.
Não sei quanto tempo fiquei ali, afogando-me na confusão de sentimentos de ódio, perplexidade, dor, tristeza e desespero. Estranhamente, não verti uma única lágrima, apenas me ajoelhei ao lado dos corpos daqueles que foram minhas maiores riquezas. Nenhum grito, suspiro, nenhum “ai”. Ali fiquei em dúvida da existência de um Deus, e quais seriam seus desígnios.
Pedi a um desses burros-sem-rabo que me ajudasse a levar os cadáveres para casa, e lá os velei. Enterrei meus filhos com uma esposa em choque ao meu lado. Não demorou muito, e a enterrei também. Definhou até a morte, sem entender o porquê de tudo aquilo.
A sequência de eventos foi quase óbvia: as forças armadas, sucateadas, não duraram muito contra os bandidos e terroristas, financiados pelas fortunas acumuladas pela corrupção, bem como outros países simpatizantes. Uma guerra civil se instaurou no país, e todos pensamos que ela acabaria quando os perdedores fossem novamente guindados ao poder.
A chamada “esperança” devolveu o poder que tinha ganho democraticamente. “Esperança”... Sei! Nunca acreditei em políticos santos, nem em salvadores da pátria. Mas entregaram o poder de volta e os perdedores, claro, aceitaram... e este foi seu maior erro.
Os bandidos e terroristas que apoiaram o novo — ou velho? — governo quiseram fazer imposições, mas quem é autoritário só aceita condições até conseguir o que quer. Até aí, o mundo inteiro só olhava, de longe, o que acontecia nestas paragens; entretanto, quando os terroristas detonaram duas bombas sujas em estações do metrô do Rio e São Paulo numa terça-feira, às cinco e meia da tarde, as coisas começaram a mudar.
Em duas semanas, o número de mortos chegou à casa das centenas de milhares, sem falar nos outros tantos contaminados, que também se tornaram óbitos. O mundo decidiu, então, intervir, mas o governo não aceitou países que não professassem a mesma forma de governo. Como era de se esperar, uma das potências não admitiu ficar de fora, e a escalada de violência entre eles resultou numa guerra global. Evitaram, no entanto, usar armas de destruição em massa.
Drogas, armas e até veículos militares continuavam a entrar livremente pelas nossas fronteiras. Os terroristas, perdendo o apoio que tinham, mantiveram sua união com os bandidos, e contaminaram a água do país, dono de vinte por cento das reservas potáveis mundiais. Bombardearam cidades com aviação de caça. Mais algumas dezenas de milhões morreram.
Mantive-me vivo porque fugi para o norte, e comecei a trabalhar numa colônia de pescadores. Sabia navegar, e isso bastava. Tive de fazer de conta que só sabia assinar o nome, a fim de não atrair atenção. Falava errado, também. Mudei meu sotaque.
Bebia água de coco, suco de melancia, ou sangue de peixes marinhos. Comer, só peixe. Vivia só e falava o necessário. A dureza e falta de palavras se encaixava perfeitamente na vida de “pescador sem estudo”.
Quando o mundo virou um lugar estéril, com cidades-estado amuralhadas, eu já estava com pouco mais de setenta anos. Consequência da guerra e do terror. A população mundial caiu para um décimo do que era, beirando os setecentos milhões. Não sei ao certo os números, porque a guerra acabou com toda a infraestrutura.
Não tínhamos mais comunicações de longa distância, internet, e até mesmo canais de televisão eram proibidos, porque a geração de energia era insuficiente para todos. Sim, sim, usávamos a bosta dos animais que criávamos para produzir metano e mover uma pequena termelétrica.
Deixei de ser pescador para ser bosteiro, como denominavam na cidade em que passei a morar. A economia girava praticamente em torno da geração de energia, e o escambo era a moeda. Quanto atraso, e tudo por conta da nossa própria idiotice.
As costas me doíam, mas ser bosteiro me garantia um bom sustento. Num dos dias em que estava lá, trabalhando, um dos adolescentes maltrapilhos da pequena cidade chegou esbaforido. Sentou-se, arfando, e disse que os fogos tinham voltado a falar. Décadas em silêncio, e voltaram a falar. Por que só agora?
Depois de retomar o fôlego, ele me disse que estavam me chamando. “Quem é que tá me chamando”, perguntei-lhe, com medo da resposta, que eu já imaginava: os fogos. Sentei-me. Respirei fundo. Quis saber se tinha certeza, afinal, tinha muitos Paulos na nossa cidade-estado. Ele me respondeu que os fogos chamavam pelo “Paulo bosteiro”. Era eu. Sem dúvida. Eu mesmo.
Fui lá, e várias chamas se faziam presentes nos túmulos. Tinham curtas, porém diferentes durações, produzindo chiados aleatórios. Uma pequena multidão já se formava em torno dos sepulcros. Apurei os ouvidos, mas só consegui discernir os “fsssssss” dos gases escapando. Nada.
Dei de ombros e me virei, quando ouvi a vozinha do meu pequeno me chamar:
— Papai... Papai... Não vá, fique comigo...
Meu garotinho. Uma alma imortal num corpo jovem, depedaçado pela crueldade, há tantas décadas. Traquinas, mas carinhoso. Cheio de vida, ao ponto de deixar eu e minha mulher de cabelos desgrenhados ao fim do dia.
Não. Não é possível. Os fogos são inteligentes, mas nunca se apresentaram como pessoas que tinham vivido antes. É um truque, só pode ser!
Ôxi! Tu é quem — perguntei, aos berros e irado, com meu sotaque, àquela voz.
— Sou eu, papai. Eduardo. Você tá muito triste. Não pode ficar assim, papai.
Tu é quem, fiduma égua — insisti, contendo as lágrimas, fazendo-me de firme.
— Papai, você sempre falou que quem trocou minha primeira fralda, quando eu era bebezinho, foi você. E me deu o primeiro banho também.
O peso da amargura me fez dobrar os joelhos lentamente, tocando a terra vermelha com eles. As lágrimas desceram como pequenos rios que tinham finalmente conseguido romper uma barreira de granito.
— Papai, o Marcelo também está aqui.
Meu outro filho. O adolescente. Quase trinta anos atrás. Meu coração. O ar. O ar falta. Pulso acelerado. Hiperventilação. Calma, porra, calma! O sangue. Boneco ensanguentado. Meu coração. Menino despedaçado. Calma, cacete!
— Pai — falou Marcelo. Era ele, sim. Prolongava a palavra, como se estivesse com preguiça.
A esta altura, eu já estava sentado. Arfava. Tentava sem sucesso secar as lágrimas, aquelas que eu não tinha derramado no momento em que me desejaram uma “boa vida”. As que eu não derramei em quase trinta anos.
— Pai... Não foi sua culpa. Tudo bem, pai. Tá tudo bem.
— Meu filho... eu... eu...
O coração. Quer sair pela boca. A arritmia é tão forte, que a sinto batendo nos tímpanos. Calma, porra!
— Pai...
— Que foi, filho — a pergunta saiu sem sotaque falso.
— Mamãe tá aqui também. Ela quer falar com você.
Não. Por favor. Parem com isso. O caixão. O caixão descendo vagarosamente. Tão devagar quanto a vida se esvaía dela, que tinha perdido tudo o que considerava precioso. Eu também tinha perdido. Eu tinha falhado. Eu tinha que ter dado a vida para salvar meus filhos. Tinha!
— Paulo, deixa isso prá lá. Você ficou muito tempo vivendo assim, se escondendo nessa tristeza toda. Vai, meu amor. É hora de você se livrar disso.
— M-mas...
— Deixa, meu amor! Não ouviu o Marcelo falar? Não foi sua culpa!
O coração. As vistas querem escurecer. Dores no fundo e alto da cabeça. Minha pressão deve estar alta. Os tímpanos soando como címbalos em mãos furiosas.
Alguém se vira para mim e me pede para perguntar aos fogos como é a vida noutro lado. Não consigo respirar. Sinto uma pontada no peito.
— Vem, meu amor. Junte-se a nós.
— Vem, pai...
— Vem, meu papaizinho querido!

Uma dor forte no peito. As vistas se escurecem. Quem me viu, disse que um fogo diferente saiu do meu corpo quando, já morto, tombei. Não era azulado como os outros fogos-fátuos, mas amarelado. Não houve palavras. Só liberdade e felicidade.

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