Google Translator

domingo, 29 de junho de 2014

Novo conto: Anjo da Guarda

Centro do Rio. Meio-dia e quinze. A Cidade Maravilhosa, em polvorosa, com as pessoas se dirigindo e saindo dos restaurantes. O rush de pedestres na hora do almoço.
Paulo sai do restaurante, decidido a pagar contas primeiro. Vai atravessar a Primeiro de Março, no sinal da rua do Ouvidor. Pelo menos, não demora tanto a fechar. Depois vai comprar os descartáveis de plástico para a festa de logo mais.
Gostava das festividades e congraçamentos do escritório. Uma chance de se desestressar, conhecer um pouco mais os colegas e as colegas de trabalho. Paulo sente um pouco de vergonha por misturar negócios com prazer; espanta-se com o que vê do outro lado da rua.
Uma mulher linda, loura, de olhos azuis e cabelos cacheados, num vestido revelador. E ela não usa nada por baixo. Paulo se pergunta como aquela mulher não foi presa, e também por que ninguém olha para ela. Até que entende: um homem chega para atravessar a rua do outro lado, e para onde ela está.
Paulo arregala os olhos. Esfrega-os. Pisca. Não há mulher alguma. “Preciso parar de dormir tarde e acordar cedo”, pensou. Sabia dos efeitos da privação do sono, e que alucinações estavam entre os sintomas. Preferiu ignorar tudo.
Atravessou. Na rua do Ouvidor, um senhor pregava, dizendo que um abismo se abriria, e que todos os pecadores seriam arrastados para o inferno. “Insistente, esse cara. Não vê que todos estão ignorando o que diz”, Paulo imaginou, apenas para ser interrompido pelo início da cantoria do pregador. Um hino, provavelmente evangélico. Paulo se deu conta de seu preconceito contra aquela religião, e inconscientemente pediu desculpas.
Estava para cruzar a rua do Carmo, quando viu outra mulher, linda. Negra, com os cabelos crespos e curtos, os olhos negros penetrantes, e o mesmo vestido revelador. Nada por baixo, a não ser um lindo corpo feminino. Paulo parou, e foi imediatamente abalroado pelo pedestre que vinha atrás. Pediu desculpas, e se encostou na parede de um dos prédios, sujando sua camisa social branca.
A mulher olhava diretamente para ele. Paulo desviou o olhar, envergonhado por encará-la daquele jeito. Sabia que sua atitude não era respeitosa. Olhou para baixo, tentando desesperadamente não olhar para aquelas formas perfeitas, aquela beleza intensa. Não aguentou: olhou novamente, apenas para ver um casal atravessá-la. Mas ela continuava lá, e o encarava tão fixamente, que ele ficou desconcertado.
A cantoria do pregador estava ainda mais alta. Paulo, entretanto, só conseguia ouvir aquelas palavras: um abismo vai se abrir, e os pecadores vão cair nele. Olhou na direção do homem que cantava, e se voltou para a mulher. Sumiu.
Paulo sacudiu a cabeça, esfregou os olhos e a testa, e soltou um longo suspiro. Entrou no banco, desceu as escadas, pegou senha. Sentou-se. Passava um desenho de animação stop-and-go na televisão. Coisa de criança.
Começou a olhar em volta, até que viu, no canto próximo às escadas, outra mulher. Oriental. Cabelos negros, olhos puxados. Estava séria. Paulo nem percebeu tanto o corpo escultural por baixo daquele vestido translúcido, quase transparente, tal era o olhar: misto de preocupação e reprovação. Envergonhado, baixou a cabeça para não admirar aquele ser sublime.
Um aperto nas têmporas o fez levantar os olhos e mirar aquela bela mulher. “Que japonesa gostosa”, disse para si, tentando baixar os olhos, reprovando seus próprios pensamentos. Não conseguiu: sua cabeça foi virada na direção daquela beleza angelical, e a viu fazer um sinal, batendo levemente com a ponta do dedo indicador no ouvido.
Paulo ouviu um apito tão alto, que se encolheu. Os dois outros clientes que esperavam a vez olharam para ele, assustados. O vigia do banco deslizou sorrateiramente a mão de dentro do colete para o coldre. Paulo fez de conta que estava com tosse, e se levantou para pegar um copo d'água.
Ela continuava lá, fazendo o sinal para que ouvisse algo. O apito diminuiu rapidamente, até ser substituído pelas palavras do pregador. “Já sei, já sei, um abismo vai se abrir e os pecadores vão cair nele”, respondeu mentalmente. Já sabia que ninguém mais via aquelas mulheres, a não ser ele mesmo.
A linda oriental apontou para ele, e depois para as escadas. Paulo pegou a conta e mostrou a ela, mas o papel se incendiou e virou cinzas, dissolvendo-se com fagulhas no ar. Ninguém viu. Ele achou melhor cumprir o que ela mandava. Subiu.
Preciso avisar meus amigos que ficaram no restaurante”. Começou a fazer rapidamente o caminho de volta, e já estava a menos de dez metros do pregador, quando viu mais uma daquelas mulheres: a pele alva se misturava ao vestido que nada escondia; longos cabelos negros arrematavam um forte contraste.
Ela lhe fez um gesto para que parasse, e o paralisou. Paulo só conseguia mexer os olhos e respirar. Pensava em como tudo aquilo parecia ser um prenúncio de loucura, em quão ilógica era aquela hora de almoço. Nada mais fazia sentido.
O lindo anjo esticou o braço para frente, apontou o indicador para baixo e o girou. Paulo sentiu seu corpo dar uma meia volta, ficando de costas para o pregador. Tentou se virar, mas nada.
Quando finalmente recobrou os movimentos, um estrondo enorme o ensurdeceu; o deslocamento de ar o jogou longe. Ele se chocou contra a estrutura metálica dos andaimes de um prédio em reforma, mas conseguiu se agarrar a eles. Tentava desesperadamente recobrar o equilíbrio, enquanto seus ouvidos apitavam de tal forma, que ele não conseguia ouvir os próprios pensamentos.
Firmou o pé direito numa das vigas, e começou a descer. Olhou para o pregador, e o viu pendurado na borda de um enorme buraco. Água e esgoto saíam dele, emporcalhando tudo à sua volta. Ouviam-se pipocos esporádicos, até que outra explosão ocorreu, com uma labareda subindo a quase dez metros.
Pegou a tubulação de gás”, Paulo pensou, enquanto descia. O pregador, pendurado e queimado, grita por socorro, alternando urros de dor. Paulo começa a correr em seu auxílio. Partes das fachadas dos prédios próximos caem, passando a centímetros do pobre homem pendurado.
As pessoas à volta começaram a correr, quando um enorme tentáculo negro emergiu do buraco, tateando suas bordas. Paulo já estava quase chegando ao homem que desesperadamente se agarrava à beirada da cratera, mas as quatro mulheres apareceram à sua frente, formadas lado a lado, impedindo sua passagem.
Por favor, deixa eu ajudar aquele cara — gritou para as belas impassíveis. Ao tocar no pregador, o tentáculo se levantou, abrindo as ventosas, e se abateu sobre ele, como uma ave de rapina faminta. Paulo tentou passar pelas mulheres, somente para ser paralisado de novo.
O pregador se agarrou com todas as forças à borda da cratera, mas o tentáculo se enroscou nele. Ouviu-se um forte estalo e um rápido grito de dor quando a coluna do homem foi partida ao meio, e ele começou a ser arrastado para dentro. Guardas municipais, até então paralisados pelo medo, fugiram. Uma viatura da polícia encostou. Policiais desceram e atiraram, mas apenas um urro veio do fundo daquela fossa, como resposta.
Um cheiro fétido exalou quando o pobre pregador desapareceu na cratera. Juntou-se ao do esgoto, dando a Paulo ânsias de vômito.
Um caminhão de Fuzileiros Navais veio rapidamente, na contramão da avenida Primeiro de Março. Freou bruscamente em frente à rua do Ouvidor. Os Fuzileiros Navais desceram rapidamente e cercaram o buraco. Um deles jogou o almoço fora, quando sentiu aquele cheiro. O Tenente comandante do pelotão advertiu-o, mandando que ele deixasse de ser fresco... e vomitou também. Recompuseram-se e continuaram, como se nada tivesse acontecido.
Paulo assistia àquilo tudo, paralisado. As quatro mulheres ainda lhe impediam a passagem.
Por que tão me torturando, me fazendo ver isso tudo? Deixem eu ir embora, e salvar minha vida!
Elas apenas o olharam. Várias imagens desconexas irromperam na mente de Paulo, como se fosse um filme cortado com cenas aleatórias. Futuro, presente e passado; sem ordem, sem sentido, num emaranhado de cenas desconexas. Paulo se sentiu tonto, sentindo o mundo girar, e desfaleceu.
Apenas uma mulher o observava quando abriu os olhos. Ela usava o mesmo vestido semitransparente das outras, que deixava entrever até seus pelos. Seus cabelos eram brancos. Igualmente linda, sensual. Causava a Paulo o mesmo turbilhão se sentimentos paradoxais de desejo e vergonha, tesão e autodisciplina.
Paulo se sentou, tentando desviar o olhar da região pubiana daquele anjo em forma de mulher. Olhou à sua volta, e não havia nada. Apenas um vazio branco, que não lhe permitia saber se estavam num recinto fechado, ou num espaço amplo. Não conseguia medir mentalmente as distâncias, não havia pontos de referência. O próprio chão era difuso, indefinido, confuso.
Onde estou perguntou, se dando conta do quanto aquela pergunta era clichê. A mulher, como resposta, lhe estendeu a mão. Puxou-o como se ele fosse uma pequena almofada, quase o lançando para cima. Paulo se assustou com a rapidez em que se viu de pé.
Quanto tempo fiquei desmaiado?
Ela apenas estendeu seu braço esquerdo para o lado, e uma tela se abriu em pleno ar, mostrando uma visão superior oblíqua da cratera. Já estava escurecendo, e à volta, policiais, fuzileiros navais e até soldados da Força Aérea combatiam aquela criatura. Alguns mortos espalhados à volta, e o incólume tentáculo a desafiar todas as táticas e munições empregadas.
Um homem se aproximou, pedindo que parassem, pois se tratava de uma espécie nova, e aquele poderia ser o único indivíduo. Era preciso preservá-lo, tinham de parar com o ataque! Foi partido ao meio e levado para o fundo do buraco pela criatura.
Paulo ouvia a tudo que se passava: os gritos; os tiros; e os horripilantes urros daquele monstro. Vez por outra, conseguia pegar um dos combatentes e o arremessava contra os prédios, estraçalhando-o com o choque. Ou então, agarrava um deles e o quebrava ao meio, o som alto dos ossos e tendões se partindo. Não dava tempo para a vítima gritar de dor.
No meio de tudo aquilo, um dos homens gritou várias vezes para os outros. Um helicóptero Esquilo da Força Aérea, armado com uma metralhadora, chegou e pairou sobre o cruzamento da Ouvidor com a Primeiro de Março. Os homens se afastaram, correndo o quanto podiam.
O helicóptero começou a atirar no monstro, apenas para fazê-lo se contorcer e emitir gritos de dor. Atirou tudo o que tinha, empurrando o tentáculo para dentro da cratera. Os homens que estavam no chão vibraram, com os braços para o alto, e alguns fuzileiros jogaram granadas. Elas explodiram, e todos deram gritos de vitória. Mas a alegria durou pouco...
Num ataque que mais lembrava uma cobra, o tentáculo segurou o esqui do helicóptero. O piloto puxou a alavanca do coletivo, para tentar ganhar altitude e se soltar. O monstro o puxou, e o arremessou contra a igreja de Santa Cruz dos Militares, causando uma tremenda explosão. O rotor de cauda saiu rodopiando numa dança desengonçada, indo se cravar numa banca de jornal, partindo-a ao meio.
Os militares não podiam acreditar. Ignoravam que o monstro pudesse alcançar tão longe. Paulo afastou os olhos para baixo, vendo tanta morte e destruição causada por algo inimaginável. A mulher angelical o tocou levemente na fronte, e as palavras “sacrifício” e “missão” ecoaram em sua cabeça.
O que quer que eu faça perguntou, apenas para se ver novamente naquela cena de guerra, com as quatro mulheres à sua frente. Tudo estava parado, ninguém se mexia. Até as chamas do helicóptero caído estavam paradas.
O anjo oriental deu um passou à frente. As outras três colocaram suas mãos direitas nos ombros e na cabeça dela. Ondas de luz começaram a se propagar pelos braços das três mulheres de trás daquela linda oriental, fazendo-a brilhar, mais e mais. Paulo protegeu os olhos. Ela desnudou os seios e pegou a mão dele, convidando-o a prová-los. Paulo o fez, a princípio com uma certa relutância, mas depois, com um prazer puro, sem erotismo. Como se fosse amor.
Paulo se saciou, sentindo-se amado e poderoso. A oriental se vestiu novamente, e todos os quatro anjos lhe abriram passagem. As chamas crepitaram, os gritos voltaram, os homens continuaram a correr. Paulo chegou à borda do buraco. O monstro se virou para ele e abriu suas ventosas, mas parou.
Vem, porra! Tá com medo? gritou, a plenos pulmões.
Sentiu apenas quando foi rasgado ao meio. A dor foi rápida, libertadora, sublime. Seu sangue escorreu como uma cascata vermelha sobre a pele do tentáculo, penetrando-a, cortando-a, queimando-a. Paulo viu o próprio corpo dilacerado ser arremessado pelo monstro, mas seu sangue continuou a matá-lo, pois agora emitia gritos de dor que gelavam o espírito de quem quer que os ouvisse.
Por fim, bolhas começaram a surgir por onde o sangue de Paulo tinha escorrido e penetrado. Cresceram ao tamanho de bexigas e explodiram, despedaçando a criatura, espalhando pedaços pelos prédios e ruas. Paulo não se mexeu.
Os restos do tentáculo fumegavam e murchavam, derretendo e sumindo. Um dos prédios, com a estrutura fragilizada por causa do enorme buraco, desabou dentro dele, cobrindo-o. Paulo se virou, e as quatro mulheres sumiram. Apenas o anjo de cabelos brancos estava lá.
O que foi tudo isso? De onde veio essa coisa? Por quê?

Sua resposta foi a mão daquela mulher maravilhosa. Segurou-a, e caminhou com ela para outra vida. Monstros que se danem.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Novo conto: Contagem Regressiva

Onze e quarenta. Hora de almoçar. Levanto-me com meus amigos, decidindo ainda aonde iremos. É sexta‑feira, dia de comer num restaurante melhor. Economizamos a semana inteira para isso. Passo no banheiro, enquanto meus amigos descem. Vão me esperar na portaria do prédio.
Meio-dia e vinte e um. Paulo toma um tiro no peito e morre. Acorda se sentindo vivo, ainda dentro do banco. Um homem alto e magro, vestindo preto e com um capuz o chama. Diz-lhe que não é sua hora, e que ele não pode estar ali. Dá-lhe uma missão, que ele acha estranha, mas aceita.
Onze e quarenta e quatro. Cansei-me de esperar o elevador. Desço as escadas correndo, usando o corrimão tubular para me ajudar a fazer as curvas... e não me esborrachar na parede. Abro a porta corta-fogo, cumprimento o porteiro, encontro meus amigos. Lembro-me de que não estou com dinheiro, e aviso o pessoal de que preciso ir ao banco, a menos que alguém queira pagar para mim. Todos riem com a piada, e me dizem aonde vamos. Concordo, e digo que vou encontrá-los depois.
Meio-dia e dezessete. O relógio de Paulo anda para trás, mas tudo parece normal. Ele já está fora do banco, mas vê os ladrões entrarem novamente. Sabe o que vai acontecer. Em pouco mais de três minutos, ele tomará um tiro. Sua vida terminará. Mas ele agora tem uma missão. Precisa cumpri-la. O homem de preto mandou, e mesmo sem conseguir ver-lhe o rosto, ele parecia bem sério e determinado. Melhor fazer o que ele manda.
Onze e quarenta e oito. Estou na frente do banco, e me lembro que minha mulher está com o cartão. Sorte que ela trabalha perto. Telefono para ela, e lhe peço para me encontrar e devolvê-lo a mim. Ela se desculpa por ter se esquecido de fazê-lo. Digo para ela, em tom de brincadeira, que não faça mais isso, senão vai se ver comigo. Um carro-forte encosta. Não gosto dos seguranças. Para mim, não têm preparo e andam armados. Desaprovo meu próprio preconceito. Começo a andar na direção do local encontrado.
Meio dia e treze. Um lapso. Paulo parecia ter se perdido nos próprios pensamentos. Ele precisa se concentrar e cumprir sua missão. Não pode ser reconhecido. Olha a carteira: pelo menos, o dinheiro que tirou para almoçar ainda está lá. Olha à sua volta: camelôs vendendo várias quinquilharias, da copa ou não. Compra uma camiseta da seleção que não sobreviverá à primeira lavada. Para na banca ao lado. Peruca amarela cacheada, nariz de palhaço, “olha o óculos da copa”! Verde e amarelo, as lentes são persianas.
— Quanto? Dez reais? Caro, hein?
— É da Copa, meu patrão. Faz o mó sucesso com a mulherada.
Paulo acena com a mão esquerda, de modo a deixar a aliança de casamento bem visível. O camelô não entende. Paulo suspira, e fala:
— Tá legal, e se eu levar a peruca e o nariz de palhaço junto?
— OK, OK, meu patrão, tudo por vinte merréis.
— Fechado. Toma aí.
Pega a sacola com aquelas coisas horríveis e sai.
Meio-dia e dois. Encontro minha mulher no saguão do prédio onde trabalha. Pego o cartão, apressado, dou meia-volta, mas ela segura o meu braço. Eu me volto, querendo saber o que foi, e ela quer me dar um beijo de despedida. Dou-lhe, e ela me solta. Eu começo a andar bem rápido. Meus amigos já devem estar comendo, e eu, com fome. Paro. Volto. Dou um abraço e um beijo na mulher, digo que a amo. Tenho de ir!
Meio-dia e sete. Outro lapso. De peruca, nariz de palhaço e camisa da seleção por cima da sua, Paulo fica à espreita. A qualquer hora, vai poder cumprir sua missão. Vai ter de correr muito, mas sabe que o outro não correrá mais que ele. Quando avistá-lo, trocará seus óculos pelos “da copa”, para dificultar mais ainda o reconhecimento.
Meio-dia e seis. Coloquei o cartão no bolso, junto com o celular. Não devia ter feito isso: um cara com camisa de seleção, peruca amarela e nariz de palhaço, usando um daqueles óculos esquisitos, rouba os dois do meu bolso. Começo a correr atrás dele. Ninguém ajuda. As ruas por onde corremos estão vazias; todo mundo aproveitando o feriado do jogo. Todo mundo menos eu, correndo atrás de um ladrão.
Meio-dia e sete. Sem lapsos. Paulo tem de fazer o outro se afastar do banco. Ele corre, o outro está logo atrás. Mas não vai alcançá-lo. A menos que ele o deixe. Entra num beco.
Meio-dia e sete. Esse filhaça tinha que ter entrado num beco. Deve me levar para um armadilha, deve ter outros esperando por ele. Vão me depenar, depois de fazerem sabe lá Deus o que comigo. Vacilo um pouco, diminuo o passo. Dane-se. Entro no beco e acelero. Ele para e se vira para mim, mãos para o alto, segurando o cartão numa, e o celular noutra.
— Toma, toma. Não quero nada seu, não. Pode levar — ele diz. Aquela voz não me era estranha. Uma lembrança de infância, minha mãe me dizendo que a gente não sabe como é a nossa voz até escutá-la.
Ouvi uma gravação da minha voz pela primeira vez num daqueles gravadores portáteis, que usavam fita cassete. Não a reconheci. Não podia ser eu. Gravei e ouvi minha voz mais umas duas vezes, até me convencer de que aquelas palavras gravadas só podiam ter sido ditas por mim.
Dou uma chave de braço no ladrão, no lado direito. Ele não reage. Sinto dor no mesmo ombro, e quando afrouxo o dele, alívio.
— Foi me roubar, seu babaca? Seu merda! Vou te levar pra polícia!
— Acho que não — ele e aquela voz da minha infância — Seu nome é Paulo, sua esposa se chama Andréa, e você tem dois fihos: Eduardo; e André. Não é?
Aquilo me assombra. Um terceiro homem entra no beco. Alto, magro, de preto, capuz vestido. Rosto que não consigo ver direito. Parece uma fotografia borrada. Mãos nos bolsos do casaco. Ele para próximo a nós e me manda soltar o ladrão.
— E se eu não soltar esse babaca? Tu vai fazer o quê — pergunto, em alto e bom “carioquês”, destruindo as concordâncias. Aperto a chave de braço, meu ombro quase estoura. Afrouxo-a.
— Largue-o.
Não quero, mas obedeço. Meu ombro agradece. O ladrão se vira para o homem alto, como se para lhe cumprimentar, e depois me encara. Tira o nariz de palhaço, a peruca e os óculos da copa. Coloca os que tinha guardado. Pega meu cartão e o celular e os coloca no bolso de onde os havia roubado.
Estou paralisado. Totalmente sem ação, ao me ver devolvendo as coisas que eu mesmo roubei de mim. A cena é, por falta de palavras, inacreditável.
— Não vá ao banco — ele me diz — pelo menos, não àquele. Você vai morrer lá. Eu morri. Ele — e apontou para o homem de preto — foi quem me permitiu estar aqui e dizer para você... ou eu, sei lá! Que não fosse lá. Não é minha hora. Sua. Porra, que confusão!
Nem sei o que dizer. O homem alto se aproxima, fazendo um sinal para que o outro se afastasse de nós. Ele me pergunta:
— Preciso lhe dizer o que vai acontecer se você revelar isso para alguém?
— Isso o quê? Aconteceu alguma coisa?
— Bom garoto — e parece que ri. Não sei, seu rosto é borrado.
Ele tira uma das mãos do casaco; ela é raquítica, horrivelmente magra. Toca a testa do outro, e ele desaparece. Não vou ao banco. Vejo um restaurante ali, próximo. Pergunto se aceita cartão. Aceita. Entro e almoço. É difícil almoçar esbaforido e desgrenhado, mas eu tento.
Meio-dia e cinquenta e três. Encontro com meus colegas, e eles me perguntam o que aconteceu. Só digo que tive uns probleminhas no banco e acabei encontrando um colega antres do almoço. Fico em frente ao computador, mas não trabalho. Não consigo. Repasso mentalmente todo o ocorrido, procurando em vão uma resposta científica, plausível, coerente, para aquilo tudo. Obviamente, não a encontro.
Dezessete e catorze. Entro em casa, e ponho a mochila e a sacola no chão. A mulher está nos fundos do apartamento. Vou à cozinha, beber água. Ouço os passos dela se aproximando. Barulho da sacola de plástico.

— Paulo, por que você comprou nariz de palhaço, peruca, camiseta e esses óculos ridículos?

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Post in English - Short Story - Life goes By

 Saturday morning. Nearly eleven-forty, usual time to leave for lunch. "But who is going to work downtown on a Saturday morning", his wife asked. He didn't bother to answer. Just turned his back on her, and was already locking the door when his little boy began to pound it from inside, shouting, "Daddy, Daddy!" He opened the door and the kid extended his small arms upward. Bent down, hugged him and said something that made ​​the boy shake his head positively.
The office was empty. Sure. He remembered his jealous wife, thinking that he would meet a lover. "Call me on my desk phone," he said. And reviewed the whole scene of leaving home.
Only the sound of computer keys being stroked opposed to the monotonous noise of the air conditioner. He hadn't taken typing lessons, yet typed as fast as his mistakes would allow him to. And he tried to fix them, whenever noticed.
Hated working Saturdays, because he never understood that working logged hours policy quite right. And with the air conditioner only on the ventilation mode, without cooling anything, he rebelled even more against that situation.
But what could he do? Meet deadlines, make reports, presentations. They called him the day before, saying they needed several changes to the presentations and documents that had been generated. Of course, all for Monday morning. No, it was not possible to extend the deadline. The account is very important. And he, of course, was the only field specialist.
It was then that it happened. Everything went black, and if it weren't for the daytime and sunlight, he would have been in the dark. No more energy. The screen faded. A cry of rage containing two expletives ripped through the air. Luckily, he lost only part of the job, because he usually enabled the autosave feature. Luckily as well, there was no one there.
He got up and went to the window, looking if anyone else had the same problem. Then saw something large falling fast, but could not see it properly: it looked like a large cloth. He couldn't perceive the shape. "If I do not know what it is, how it can be a large cl...". A huge roar interrupted and frightened him. Then the unmistakable noise of a car alarm siren. The uproar came from the street down there. He opened the window, trying to see what it was.
Downstairs, an inert body layed on a car. The hood completely crushed by the shock, and the corpse in a position that resembled a marionette carelessly thrown on the ground. The headlights and indicators flashing furiously, equaling the rhythm of the alarm siren.
People began to gather around. Weird that the alarm was so loud, though the floor where he standed was not low. Also strange was the fact that he could listen to what people said from afar, no matter how loud the siren was. However, he did not understand what they said.
He checked his watch. Eleven forty-three. Decided to go down to have lunch, and give a look at the poor man. Suicide was, for him, an act of great cowardice or courage. Believed in life after death, and suicide was to go against the law of preservation.
The damn door leading to the hall to the elevators did not pry open. Could not be electromagnetic lock: there was no energy! "A crowbar would come in handy," he thought.
He passed through the building's entrance, and a small crowd was already formed around the accident. The car wasn't visible anymore. An ambulance had just arrived, and stopped the traffic on the narrow street. Paramedics jumped off and went to the man; examined him and concluded by death.
He was not able to see the poor devil. A lot of people, and he hated agglomerations. Stopped at the door of the restaurant, feeling confused. He shrugged, and was about to enter, when he heard someone behind him:
— Where do you think you're going — asked a thick, hollow voice. He thought he heard reverberations on the buildings around. Maybe it was because he was stressed, because it was Saturday, because downtown was deserted.
He turned and saw a tall, slim stranger with black pants and coat. The hood was on, and even at that time, his face was blurred. Undaunted, he replied:
— Lunch, of course. Have we met?
— You know me, Paul. I have come for you — those words caused him awkwardness. He prepared himself to fight, but his pulse did not quicken. Neither the blood rose, nor the hair erased. Nothing.
How could the stranger know his name? Thought he had better get into the restaurant, but could not move.
— What are you doing to me — he asked, shouting.
— Shout as long as you want. No one will ...
— Hear me? What a lame sentence, huh? You could say just "shouting will do you no good". I'd understand ...
He saw the paramedics removing the dead. Paul was finally able to see the man's face, but did not recognize. The collision with the car disfigured that poor devil's face. The scene took away all of Paul's appetite.
— Did you know him?
— Yes. Same name as yours.
He found at least intriguing that the man was also called Paul. He didn't even see clothes; blood had spread all over them.
— How do you know my name?
— I already told you: I came to get you.
Paul wondered why someone had come to get him. He insisted that the stranger told him how he knew his name. The man in black told him that everything would be cleared up in time. Paul insisted. He also wanted to know what kind of trick that odd man used to paralyse him. Heard the following response:
— You always thought of youserlf as very clever, is not it? You've told everyone eles otherwise, to try to dominate your own arrogance, but never really believed what you spoke — Paul felt shame invade his soul, however, did not feel blush — If you are that smart, answer me: how did you arrive at entrance of your building? You were struggling with the office door in one moment, and on the next one, yo were downstairs.
— Simple! I. .. Huh! I went down the stairs! There was a power surge.
— Do you have any recollection of having descended the stairs?
Paul changed the triumphant smile on the face for a bewildered doubt. He could not remember. It was like the man in black had spoken: one minute at the office door, and next one at the entrance.
— I see you are no longer so confident. I'll ask you a few more things, then: how did you get to the restaurant? And how did we get back here?
Paul opened his mouth to reply that he had walked, as always, but searched in his mind the images of the walk, and found nothing. He had no recollection of any of the three shifts.
More and more confused, he began rummaging in his brain everything else he had forgotten. He tried to remember the most of the day up till there. Nothing.
— Sometimes you have moments of disturbance, when passing by very strong traumas.
— What strong trauma? Nothing happened to me! I'm fine!
Paul finished his sentence screaming. However, he felt physically unchanged. The man in black asked him what he had told his son before leaving home. Paul did not know. The stranger asked him what he felt for his wife. Paul replied automatically:
— I love her! She is the woman of my life. Not perfect, but excellent mother and companion.
— So why do you cheat on her — he asked, causing immediate discomfort on Paul.
How the stranger knew so much of his life, Paul was unaware. One good thing happened: with all that mixed feeling of hatred and perplexity: he remembered the frequent fights with his wife, how he wanted her to become more involved with him again, and come to him, rather than avoid it.
He remembered the discussions for silly reasons, and the weeks they passed without touching each other, because of them. And began to list more bad times than good ones in the recent years. Finally, he remembered the fight he had with his wife before leaving home in the morning.
Those bad memories rescued other long lost ones. The anger he had for the various doors that were closed on him throughout his life, no matter all the efforts. The small depressions he felt from time to time, all the effort invested and never recognized.
He lowered his head, and shook it. Realized the weight of the grief he carried, and the time spent nurturing feelings of revolt against everything and everyone. He remembered the friends who gave up talking him out of those negative ideas, after trying to do so for years, and felt sad.
His frustration came to mind in waves that made ​​his head throb, and he fell to his knees, remembering how he treated his sons: the older one walked away; and the youngest was afraid of him. He lifted his head and saw no one else around, except that strange man. It was dark. Tears ran down his face, and Paul finally repented for having left his life to get to that point.
He looked at the man in black, still not seeing his face, and asked:
— What about the blackout?
The only answer that Paul received from him was a light touch of that skeletal hand on his forehead. Flashes popped into his mind, and he suffered spasms. He remembered what he told his little son: "Take good care of Mom. You and your brother are the men of the house now".
The reason for coming to the office was made clear, and he realized that there was never any blackout. Neither work. Only the window. The wind. The shock. The darkness.
— It's time to go — Said the stranger.
 Paul stood up and followed him.

domingo, 8 de junho de 2014

Novo conto: O Mendigo


Centro da cidade vazio. Onze e pouco da manhã. Olho para o relógio: onze e treze. Afasto a insegurança do “onze e pouco” com a certeza da hora exata. Nada como viver num mundo seguro.
Por que eu estava no centro da cidade, num domingo de manhã? “Eu deveria ter feito isso numa hora de almoço”, pensei. E o Museu Naval ficava bem mais perto a pé, do trabalho, que de metrô, da minha casa. A preguiça é mesmo irritante! Nem vou comentar sobre a cultura carioca de deixar tudo para a última hora...
Eu queria, por causa do livro novo, fazer uma pesquisa para saber quantos escaleres havia numa caravela, à época dos descobrimentos. As maquetes do Museu Naval são acuradas, detalhadas, bem feitas. Têm todas as informações de que preciso.
Saio da Praça XV e decido caminhar pelas vielas próximas, para observar a arquitetura dos velhos prédios, todos casarões antigos. Minha mãe, depois do curso de turismo, me disse que as grades das sacadas foram importadas da Inglaterra e França, pois não havia fundições aqui. Lindas, trabalhadas, com curvas suaves.
Ando com o olhar para o alto, prestando atenção a elas, aos azulejos e até mesmo aos afrescos. As construções, antigas, ainda retêm a beleza, mas poderiam estar muito mais conservadas. Um ou outro par de turistas tirando fotos, aproveitando o belo dia de outono.
Entro no Arco do Teles e, ao fazer a curva, sou interrompido pelas lamúrias de um mendigo, chorando de fome. Passo direto, ignorando-o, na vã esperança de que alguém vá fazer algo sobre isso. Não é problema meu. Só que não tem mais ninguém ali; pelo menos, nenhum outro ser material.
Volto-me na direção dele, que aumenta as lamúrias, chorando ainda mais alto, pedindo-me algo para comer.
— Está com fome, rapaz — pergunto a ele, e me sinto imediatamente um tolo, por querer saber o óbvio.
— Por favor, uma esmola, pra mim comer um pão — a voz dele se esvai num fiapo, quando termina a frase, soluçando. Seu desespero denota que está já há um tempo considerável sem se alimentar.
— Peraí, que eu já volto.
Alguma coisa deve estar aberta. Pela hora, os restaurantes devem estar abrindo. Só tem um detalhe: é domingo. É o Centro. De manhã. Quem vai abrir o que aqui?
Atravesso a Primeiro de Março, subindo pela rua do Rosário. Estou me afastando muito do pobre mendigo. Chego a uma bendita lanchonete, aberta. É onde eu, às vezes, tomo um café com pães de queijo com o pessoal do trabalho, para espantar aquela fome de meio da manhã.
Peço dois salgados grandes e um copo de mate. Nem me importo com o que é; apontei na pequena vitrine do balcão, pedi para viagem, paguei, saí no pé que entrei.
Volto o caminho todo até reencontrar aquele pobre homem, que sorri ao me ver. Ele pega um dos salgados — acho que era um croissant de queijo com presunto —, e me oferece o outro. Pede que me sente com ele para comer. Agradeço-lhe, mas declino. Digo que o outro é para ele comer mais tarde. Ele insiste, e eu digo que não estou com fome, mas me sentarei com ele e o verei saciar sua fome.
Sento-me, tentando não torcer o nariz àquele cheiro de urina impregnado nele. Meu estômago se contorce. Felizmente, domino as ânsias de vômito que aquele odor intenso me causa. Ele come como se não houvesse amanhã, nem cidade, nem um mundo à nossa volta.
Bebe o mate, os goles fazendo aquelas ruídos terríveis de quem tem muita sede. Olho e vejo sua glote subindo e descendo, sincronizada com o barulho. A pele do pescoço encardida, a face envelhecida por tanto sofrimento.
Apesar de tudo aquilo, sinto-me feliz por diminuir o infortúnio na vida de um irmão. Eu me levanto para sair, ele também, e fala:
— Hora de lhe agradecer, meu irmão.
— Fique tranquilo, rapaz. Acredita em Deus?
— Acredito, sim.
— Então reza pra ele. Peça pra ele não se esquecer do careca de óculos que parou pra te ajudar.
Disse estas palavras e me virei para sair. Ele me pediu para esperar. O que aconteceu a seguir foi totalmente inesperado.
Seus sapatos começaram a se desfazer em faíscas, evaporando-se no ar como fagulhas. Suas roupas também, de baixo para cima, enquanto um brilho ofuscante me fez proteger os olhos. Ouvi na minha cabeça uma música estranha, mas linda, como se um coro de anjos cantasse.
Um calor irradiava daquele homem, que me envolveu e me fez sentir bem, tranquilo, benquisto, seguro. Abri os olhos e aquele mendigo estava vestido com longas vestes alvas, tão brancas que o sol da manhã o fazia brilhar. Só aí me lembrei de pegar o celular para filmar aquilo, mas o mendigo fez um gesto para que parasse. Guardei o telefone.
— Quem é você — perguntei.
— Não interessa quem sou. Interessa o bem que me fizeste.
Olhei para os pés dele. Os sapatos rotos tinham se transformado em sandálias, daquelas antigas, amarradas com finas tiras de couro.
Ele pôs as mãos em meus ombros. Aquele fétido odor de urina seca tinha se transformado em perfume de rosas, e o meu espírito estava em paz.
— O que deseja, meu irmão? Pede, e eu te darei.
— Como assim? Eu apenas queria vos ajudar — eu disse, caprichando no português.
— Posso te dar o que quiseres. Poderás ser rico, famoso, poderoso.
Imediatamente pensei em quanta gente eu poderia ajudar se tivesse dinheiro e poder. As dívidas acumuladas, o cheque especial. Imagine poder ir morar num país sério, afinal!
Mas dinheiro e poder talvez me transformassem em alguém que massacrasse os outros para atingir meus objetivos. É a chamada “picada da mosca azul”. Melhor não arriscar. Melhor eu continuar com a minha vida, e deixar que Deus decida, pelo meu esforço, quando tem ou não de me recompensar. Se bem que acho que já me recompensou. O conhecimento, os amigos, as oportunidades. A saúde, a família. Não ter defeitos físicos que me dficultassem a vida, mas me ensinassem a ser mais humilde. Sim, esta era a minha recompensa: poder ganhar a vida honestamente, com o suor do meu trabalho.
Se eu não tinha ficado rico até agora, com muito trabalho, esforço e dedicação, não ficaria mais. Jogava na loteria, no bolão dos amigos, por desencargo de consciência, ou mesmo pelo medo de ter de abrir o escritório sozinho, se todos ganhassem, menos eu!
— Podeis me dar a paz no mundo? Podeis terminar com a miséria no Brasil? Podeis tornar nosso país, tão rico, tão diverso, o coração do mundo? Escuto falar que somos o “país do futuro” desde criança; podeis me dar a certeza de que não perdemos o bonde da História? Podeis fazer com que o futuro finalmente chegue à nossa tão combalida pátria — perguntei, aos prantos. A emoção me tomou. O amor ao meu país ainda fala alto.
— Por que pedes para os outros?
— Se fiz um bem a vós, poderíeis fazer um bem a todos nós.
— Tu fizeste um bem a mim. Eu farei um bem a ti.
— Obrigado, mas se puderdes fazer bem à minha pátria, ficarei feliz. Se não o puderdes fazer, pedir‑vos‑ei que, se vos aprouver, me defendais perante Deus.
— Tens de pedir algo para ti! Não queres riqueza? Poder?
Comecei a achar estranha aquela insistência. Por que a obsessão com dinheiro e poder?
— Eu vos agradeço, mas é melhor que eu me vá. Desejo-vos tudo de bom.
O homem soltou um grito de raiva. Suas vestes repentinamente se tornaram escuras, e sua pele ficou coberta por grossas escamas cinzentas. Dei dois passos para trás, mas bati numa parede invisível. Dei as costas para ele e já ia começar a correr, mas aquele muro era tão intransponível, quanto impercetível.
Voltei-me a ele, e seus olhos estavam vermelhos e brilhantes.
— Hipócrita, arrogante, adúltero — ele gritou — tua hora chegou, eu sou o instrumento do teu fim!
Levantou a mão direita, e garras negras e afiadas cresceram. Senti uma dor lancinante quando ele as cravou no meu peito, rindo. Tudo à nossa volta escureceu, e ouvi milhares de gritos lamurientos, como se a perdição da humanidade se tornasse um horripilante coro.
Por instinto, segurei o antebraço daquele terrível ser, enquanto tentava em vão me manter em pé. Não morreria de joelhos. Minha arrogância e meu orgulho não me deixariam!
— Onde está o teu Deus agora? Não crês n'Ele? Dize-me, onde está ele — Perguntou-me, com uma gargalhada que me causou um arrepio congelante.
Olhei para aquelas garras enterradas no meu peito, e vi um fluxo brilhante sair de mim e se dissolver na altura do cotovelo dele. Minha alma, minhas energias, minhas lembranças, tudo estava deixando o meu corpo, sendo levado por ele.
Caí de joelhos, mas não podia me dar por vencido. Mirei aqueles olhos, e vi que minha fé talvez não me salvasse.
Você só está aqui porque Deus lhe permite — falei, num grande esforço. Ele gargalhou novamente.
Teu Deus não está aqui. Ele te abandonou, idiota. Ele não quer saber de ti, pois tu O renegaste!
Não reneguei!
Sim, tu O renegaste, quando continuastes a ser o arrogante adúltero que és! Ele te deu tudo, e tu O pagaste com traição! Tua hora chegou, tua alma é minha!
Eu... não... acredito nisso!
Pois está acontecendo — outra gargalhada satânica —, e tu virás comigo!
Já não tinha forças. Ele me vencia, tirava tudo de mim. Logo eu seria absorvido por aquele ser, e restaria apenas o meu corpo sem vida, como sinal de minha passagem pela Terra. Num último esforço, falei:
Vou... feliz... Meu último... ato... f-foi... de... ca... ca... caridade — gritei, com o que me restava de fôlego.
Um longo e estridente grito reverberou pela viela. Ele puxou suas garras de mim, soltando imprecações em direção aos céus, e eu me senti subitamente melhor.
Eu e tu ainda conversaremos novamente — ele gritou, apontando para mim — Eu voltarei!
Ele se tornou gradativamente transparente, até sumir. Levantei-me lentamente, olhando minha camisa ensanguentada e rasgada. Abri-a e olhei meu peito, a tempo de ver uma cena insólita: as feridas se fechando, sem deixar cicatrizes.
Tudo ficou claro novamente. Uma guia com um grupo de turistas entrou na estreita rua de paralelepípedos. Eu fechei minha camisa, e me virei antes que me vissem naquele estado.
Mesmo não sendo católico, entrei na igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, sentei-me num dos bancos, e fiz uma prece. Agradeci a Deus por mais aquela oportunidade, prometi melhorar, e fui embora.