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segunda-feira, 16 de junho de 2014

Novo conto: Contagem Regressiva

Onze e quarenta. Hora de almoçar. Levanto-me com meus amigos, decidindo ainda aonde iremos. É sexta‑feira, dia de comer num restaurante melhor. Economizamos a semana inteira para isso. Passo no banheiro, enquanto meus amigos descem. Vão me esperar na portaria do prédio.
Meio-dia e vinte e um. Paulo toma um tiro no peito e morre. Acorda se sentindo vivo, ainda dentro do banco. Um homem alto e magro, vestindo preto e com um capuz o chama. Diz-lhe que não é sua hora, e que ele não pode estar ali. Dá-lhe uma missão, que ele acha estranha, mas aceita.
Onze e quarenta e quatro. Cansei-me de esperar o elevador. Desço as escadas correndo, usando o corrimão tubular para me ajudar a fazer as curvas... e não me esborrachar na parede. Abro a porta corta-fogo, cumprimento o porteiro, encontro meus amigos. Lembro-me de que não estou com dinheiro, e aviso o pessoal de que preciso ir ao banco, a menos que alguém queira pagar para mim. Todos riem com a piada, e me dizem aonde vamos. Concordo, e digo que vou encontrá-los depois.
Meio-dia e dezessete. O relógio de Paulo anda para trás, mas tudo parece normal. Ele já está fora do banco, mas vê os ladrões entrarem novamente. Sabe o que vai acontecer. Em pouco mais de três minutos, ele tomará um tiro. Sua vida terminará. Mas ele agora tem uma missão. Precisa cumpri-la. O homem de preto mandou, e mesmo sem conseguir ver-lhe o rosto, ele parecia bem sério e determinado. Melhor fazer o que ele manda.
Onze e quarenta e oito. Estou na frente do banco, e me lembro que minha mulher está com o cartão. Sorte que ela trabalha perto. Telefono para ela, e lhe peço para me encontrar e devolvê-lo a mim. Ela se desculpa por ter se esquecido de fazê-lo. Digo para ela, em tom de brincadeira, que não faça mais isso, senão vai se ver comigo. Um carro-forte encosta. Não gosto dos seguranças. Para mim, não têm preparo e andam armados. Desaprovo meu próprio preconceito. Começo a andar na direção do local encontrado.
Meio dia e treze. Um lapso. Paulo parecia ter se perdido nos próprios pensamentos. Ele precisa se concentrar e cumprir sua missão. Não pode ser reconhecido. Olha a carteira: pelo menos, o dinheiro que tirou para almoçar ainda está lá. Olha à sua volta: camelôs vendendo várias quinquilharias, da copa ou não. Compra uma camiseta da seleção que não sobreviverá à primeira lavada. Para na banca ao lado. Peruca amarela cacheada, nariz de palhaço, “olha o óculos da copa”! Verde e amarelo, as lentes são persianas.
— Quanto? Dez reais? Caro, hein?
— É da Copa, meu patrão. Faz o mó sucesso com a mulherada.
Paulo acena com a mão esquerda, de modo a deixar a aliança de casamento bem visível. O camelô não entende. Paulo suspira, e fala:
— Tá legal, e se eu levar a peruca e o nariz de palhaço junto?
— OK, OK, meu patrão, tudo por vinte merréis.
— Fechado. Toma aí.
Pega a sacola com aquelas coisas horríveis e sai.
Meio-dia e dois. Encontro minha mulher no saguão do prédio onde trabalha. Pego o cartão, apressado, dou meia-volta, mas ela segura o meu braço. Eu me volto, querendo saber o que foi, e ela quer me dar um beijo de despedida. Dou-lhe, e ela me solta. Eu começo a andar bem rápido. Meus amigos já devem estar comendo, e eu, com fome. Paro. Volto. Dou um abraço e um beijo na mulher, digo que a amo. Tenho de ir!
Meio-dia e sete. Outro lapso. De peruca, nariz de palhaço e camisa da seleção por cima da sua, Paulo fica à espreita. A qualquer hora, vai poder cumprir sua missão. Vai ter de correr muito, mas sabe que o outro não correrá mais que ele. Quando avistá-lo, trocará seus óculos pelos “da copa”, para dificultar mais ainda o reconhecimento.
Meio-dia e seis. Coloquei o cartão no bolso, junto com o celular. Não devia ter feito isso: um cara com camisa de seleção, peruca amarela e nariz de palhaço, usando um daqueles óculos esquisitos, rouba os dois do meu bolso. Começo a correr atrás dele. Ninguém ajuda. As ruas por onde corremos estão vazias; todo mundo aproveitando o feriado do jogo. Todo mundo menos eu, correndo atrás de um ladrão.
Meio-dia e sete. Sem lapsos. Paulo tem de fazer o outro se afastar do banco. Ele corre, o outro está logo atrás. Mas não vai alcançá-lo. A menos que ele o deixe. Entra num beco.
Meio-dia e sete. Esse filhaça tinha que ter entrado num beco. Deve me levar para um armadilha, deve ter outros esperando por ele. Vão me depenar, depois de fazerem sabe lá Deus o que comigo. Vacilo um pouco, diminuo o passo. Dane-se. Entro no beco e acelero. Ele para e se vira para mim, mãos para o alto, segurando o cartão numa, e o celular noutra.
— Toma, toma. Não quero nada seu, não. Pode levar — ele diz. Aquela voz não me era estranha. Uma lembrança de infância, minha mãe me dizendo que a gente não sabe como é a nossa voz até escutá-la.
Ouvi uma gravação da minha voz pela primeira vez num daqueles gravadores portáteis, que usavam fita cassete. Não a reconheci. Não podia ser eu. Gravei e ouvi minha voz mais umas duas vezes, até me convencer de que aquelas palavras gravadas só podiam ter sido ditas por mim.
Dou uma chave de braço no ladrão, no lado direito. Ele não reage. Sinto dor no mesmo ombro, e quando afrouxo o dele, alívio.
— Foi me roubar, seu babaca? Seu merda! Vou te levar pra polícia!
— Acho que não — ele e aquela voz da minha infância — Seu nome é Paulo, sua esposa se chama Andréa, e você tem dois fihos: Eduardo; e André. Não é?
Aquilo me assombra. Um terceiro homem entra no beco. Alto, magro, de preto, capuz vestido. Rosto que não consigo ver direito. Parece uma fotografia borrada. Mãos nos bolsos do casaco. Ele para próximo a nós e me manda soltar o ladrão.
— E se eu não soltar esse babaca? Tu vai fazer o quê — pergunto, em alto e bom “carioquês”, destruindo as concordâncias. Aperto a chave de braço, meu ombro quase estoura. Afrouxo-a.
— Largue-o.
Não quero, mas obedeço. Meu ombro agradece. O ladrão se vira para o homem alto, como se para lhe cumprimentar, e depois me encara. Tira o nariz de palhaço, a peruca e os óculos da copa. Coloca os que tinha guardado. Pega meu cartão e o celular e os coloca no bolso de onde os havia roubado.
Estou paralisado. Totalmente sem ação, ao me ver devolvendo as coisas que eu mesmo roubei de mim. A cena é, por falta de palavras, inacreditável.
— Não vá ao banco — ele me diz — pelo menos, não àquele. Você vai morrer lá. Eu morri. Ele — e apontou para o homem de preto — foi quem me permitiu estar aqui e dizer para você... ou eu, sei lá! Que não fosse lá. Não é minha hora. Sua. Porra, que confusão!
Nem sei o que dizer. O homem alto se aproxima, fazendo um sinal para que o outro se afastasse de nós. Ele me pergunta:
— Preciso lhe dizer o que vai acontecer se você revelar isso para alguém?
— Isso o quê? Aconteceu alguma coisa?
— Bom garoto — e parece que ri. Não sei, seu rosto é borrado.
Ele tira uma das mãos do casaco; ela é raquítica, horrivelmente magra. Toca a testa do outro, e ele desaparece. Não vou ao banco. Vejo um restaurante ali, próximo. Pergunto se aceita cartão. Aceita. Entro e almoço. É difícil almoçar esbaforido e desgrenhado, mas eu tento.
Meio-dia e cinquenta e três. Encontro com meus colegas, e eles me perguntam o que aconteceu. Só digo que tive uns probleminhas no banco e acabei encontrando um colega antres do almoço. Fico em frente ao computador, mas não trabalho. Não consigo. Repasso mentalmente todo o ocorrido, procurando em vão uma resposta científica, plausível, coerente, para aquilo tudo. Obviamente, não a encontro.
Dezessete e catorze. Entro em casa, e ponho a mochila e a sacola no chão. A mulher está nos fundos do apartamento. Vou à cozinha, beber água. Ouço os passos dela se aproximando. Barulho da sacola de plástico.

— Paulo, por que você comprou nariz de palhaço, peruca, camiseta e esses óculos ridículos?

2 comentários:

  1. Muito bom, melhorando mais e mais. Parabéns. Continue assim. Gosto deste estilo de futuro-passado-presente.

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