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domingo, 8 de junho de 2014

Novo conto: O Mendigo


Centro da cidade vazio. Onze e pouco da manhã. Olho para o relógio: onze e treze. Afasto a insegurança do “onze e pouco” com a certeza da hora exata. Nada como viver num mundo seguro.
Por que eu estava no centro da cidade, num domingo de manhã? “Eu deveria ter feito isso numa hora de almoço”, pensei. E o Museu Naval ficava bem mais perto a pé, do trabalho, que de metrô, da minha casa. A preguiça é mesmo irritante! Nem vou comentar sobre a cultura carioca de deixar tudo para a última hora...
Eu queria, por causa do livro novo, fazer uma pesquisa para saber quantos escaleres havia numa caravela, à época dos descobrimentos. As maquetes do Museu Naval são acuradas, detalhadas, bem feitas. Têm todas as informações de que preciso.
Saio da Praça XV e decido caminhar pelas vielas próximas, para observar a arquitetura dos velhos prédios, todos casarões antigos. Minha mãe, depois do curso de turismo, me disse que as grades das sacadas foram importadas da Inglaterra e França, pois não havia fundições aqui. Lindas, trabalhadas, com curvas suaves.
Ando com o olhar para o alto, prestando atenção a elas, aos azulejos e até mesmo aos afrescos. As construções, antigas, ainda retêm a beleza, mas poderiam estar muito mais conservadas. Um ou outro par de turistas tirando fotos, aproveitando o belo dia de outono.
Entro no Arco do Teles e, ao fazer a curva, sou interrompido pelas lamúrias de um mendigo, chorando de fome. Passo direto, ignorando-o, na vã esperança de que alguém vá fazer algo sobre isso. Não é problema meu. Só que não tem mais ninguém ali; pelo menos, nenhum outro ser material.
Volto-me na direção dele, que aumenta as lamúrias, chorando ainda mais alto, pedindo-me algo para comer.
— Está com fome, rapaz — pergunto a ele, e me sinto imediatamente um tolo, por querer saber o óbvio.
— Por favor, uma esmola, pra mim comer um pão — a voz dele se esvai num fiapo, quando termina a frase, soluçando. Seu desespero denota que está já há um tempo considerável sem se alimentar.
— Peraí, que eu já volto.
Alguma coisa deve estar aberta. Pela hora, os restaurantes devem estar abrindo. Só tem um detalhe: é domingo. É o Centro. De manhã. Quem vai abrir o que aqui?
Atravesso a Primeiro de Março, subindo pela rua do Rosário. Estou me afastando muito do pobre mendigo. Chego a uma bendita lanchonete, aberta. É onde eu, às vezes, tomo um café com pães de queijo com o pessoal do trabalho, para espantar aquela fome de meio da manhã.
Peço dois salgados grandes e um copo de mate. Nem me importo com o que é; apontei na pequena vitrine do balcão, pedi para viagem, paguei, saí no pé que entrei.
Volto o caminho todo até reencontrar aquele pobre homem, que sorri ao me ver. Ele pega um dos salgados — acho que era um croissant de queijo com presunto —, e me oferece o outro. Pede que me sente com ele para comer. Agradeço-lhe, mas declino. Digo que o outro é para ele comer mais tarde. Ele insiste, e eu digo que não estou com fome, mas me sentarei com ele e o verei saciar sua fome.
Sento-me, tentando não torcer o nariz àquele cheiro de urina impregnado nele. Meu estômago se contorce. Felizmente, domino as ânsias de vômito que aquele odor intenso me causa. Ele come como se não houvesse amanhã, nem cidade, nem um mundo à nossa volta.
Bebe o mate, os goles fazendo aquelas ruídos terríveis de quem tem muita sede. Olho e vejo sua glote subindo e descendo, sincronizada com o barulho. A pele do pescoço encardida, a face envelhecida por tanto sofrimento.
Apesar de tudo aquilo, sinto-me feliz por diminuir o infortúnio na vida de um irmão. Eu me levanto para sair, ele também, e fala:
— Hora de lhe agradecer, meu irmão.
— Fique tranquilo, rapaz. Acredita em Deus?
— Acredito, sim.
— Então reza pra ele. Peça pra ele não se esquecer do careca de óculos que parou pra te ajudar.
Disse estas palavras e me virei para sair. Ele me pediu para esperar. O que aconteceu a seguir foi totalmente inesperado.
Seus sapatos começaram a se desfazer em faíscas, evaporando-se no ar como fagulhas. Suas roupas também, de baixo para cima, enquanto um brilho ofuscante me fez proteger os olhos. Ouvi na minha cabeça uma música estranha, mas linda, como se um coro de anjos cantasse.
Um calor irradiava daquele homem, que me envolveu e me fez sentir bem, tranquilo, benquisto, seguro. Abri os olhos e aquele mendigo estava vestido com longas vestes alvas, tão brancas que o sol da manhã o fazia brilhar. Só aí me lembrei de pegar o celular para filmar aquilo, mas o mendigo fez um gesto para que parasse. Guardei o telefone.
— Quem é você — perguntei.
— Não interessa quem sou. Interessa o bem que me fizeste.
Olhei para os pés dele. Os sapatos rotos tinham se transformado em sandálias, daquelas antigas, amarradas com finas tiras de couro.
Ele pôs as mãos em meus ombros. Aquele fétido odor de urina seca tinha se transformado em perfume de rosas, e o meu espírito estava em paz.
— O que deseja, meu irmão? Pede, e eu te darei.
— Como assim? Eu apenas queria vos ajudar — eu disse, caprichando no português.
— Posso te dar o que quiseres. Poderás ser rico, famoso, poderoso.
Imediatamente pensei em quanta gente eu poderia ajudar se tivesse dinheiro e poder. As dívidas acumuladas, o cheque especial. Imagine poder ir morar num país sério, afinal!
Mas dinheiro e poder talvez me transformassem em alguém que massacrasse os outros para atingir meus objetivos. É a chamada “picada da mosca azul”. Melhor não arriscar. Melhor eu continuar com a minha vida, e deixar que Deus decida, pelo meu esforço, quando tem ou não de me recompensar. Se bem que acho que já me recompensou. O conhecimento, os amigos, as oportunidades. A saúde, a família. Não ter defeitos físicos que me dficultassem a vida, mas me ensinassem a ser mais humilde. Sim, esta era a minha recompensa: poder ganhar a vida honestamente, com o suor do meu trabalho.
Se eu não tinha ficado rico até agora, com muito trabalho, esforço e dedicação, não ficaria mais. Jogava na loteria, no bolão dos amigos, por desencargo de consciência, ou mesmo pelo medo de ter de abrir o escritório sozinho, se todos ganhassem, menos eu!
— Podeis me dar a paz no mundo? Podeis terminar com a miséria no Brasil? Podeis tornar nosso país, tão rico, tão diverso, o coração do mundo? Escuto falar que somos o “país do futuro” desde criança; podeis me dar a certeza de que não perdemos o bonde da História? Podeis fazer com que o futuro finalmente chegue à nossa tão combalida pátria — perguntei, aos prantos. A emoção me tomou. O amor ao meu país ainda fala alto.
— Por que pedes para os outros?
— Se fiz um bem a vós, poderíeis fazer um bem a todos nós.
— Tu fizeste um bem a mim. Eu farei um bem a ti.
— Obrigado, mas se puderdes fazer bem à minha pátria, ficarei feliz. Se não o puderdes fazer, pedir‑vos‑ei que, se vos aprouver, me defendais perante Deus.
— Tens de pedir algo para ti! Não queres riqueza? Poder?
Comecei a achar estranha aquela insistência. Por que a obsessão com dinheiro e poder?
— Eu vos agradeço, mas é melhor que eu me vá. Desejo-vos tudo de bom.
O homem soltou um grito de raiva. Suas vestes repentinamente se tornaram escuras, e sua pele ficou coberta por grossas escamas cinzentas. Dei dois passos para trás, mas bati numa parede invisível. Dei as costas para ele e já ia começar a correr, mas aquele muro era tão intransponível, quanto impercetível.
Voltei-me a ele, e seus olhos estavam vermelhos e brilhantes.
— Hipócrita, arrogante, adúltero — ele gritou — tua hora chegou, eu sou o instrumento do teu fim!
Levantou a mão direita, e garras negras e afiadas cresceram. Senti uma dor lancinante quando ele as cravou no meu peito, rindo. Tudo à nossa volta escureceu, e ouvi milhares de gritos lamurientos, como se a perdição da humanidade se tornasse um horripilante coro.
Por instinto, segurei o antebraço daquele terrível ser, enquanto tentava em vão me manter em pé. Não morreria de joelhos. Minha arrogância e meu orgulho não me deixariam!
— Onde está o teu Deus agora? Não crês n'Ele? Dize-me, onde está ele — Perguntou-me, com uma gargalhada que me causou um arrepio congelante.
Olhei para aquelas garras enterradas no meu peito, e vi um fluxo brilhante sair de mim e se dissolver na altura do cotovelo dele. Minha alma, minhas energias, minhas lembranças, tudo estava deixando o meu corpo, sendo levado por ele.
Caí de joelhos, mas não podia me dar por vencido. Mirei aqueles olhos, e vi que minha fé talvez não me salvasse.
Você só está aqui porque Deus lhe permite — falei, num grande esforço. Ele gargalhou novamente.
Teu Deus não está aqui. Ele te abandonou, idiota. Ele não quer saber de ti, pois tu O renegaste!
Não reneguei!
Sim, tu O renegaste, quando continuastes a ser o arrogante adúltero que és! Ele te deu tudo, e tu O pagaste com traição! Tua hora chegou, tua alma é minha!
Eu... não... acredito nisso!
Pois está acontecendo — outra gargalhada satânica —, e tu virás comigo!
Já não tinha forças. Ele me vencia, tirava tudo de mim. Logo eu seria absorvido por aquele ser, e restaria apenas o meu corpo sem vida, como sinal de minha passagem pela Terra. Num último esforço, falei:
Vou... feliz... Meu último... ato... f-foi... de... ca... ca... caridade — gritei, com o que me restava de fôlego.
Um longo e estridente grito reverberou pela viela. Ele puxou suas garras de mim, soltando imprecações em direção aos céus, e eu me senti subitamente melhor.
Eu e tu ainda conversaremos novamente — ele gritou, apontando para mim — Eu voltarei!
Ele se tornou gradativamente transparente, até sumir. Levantei-me lentamente, olhando minha camisa ensanguentada e rasgada. Abri-a e olhei meu peito, a tempo de ver uma cena insólita: as feridas se fechando, sem deixar cicatrizes.
Tudo ficou claro novamente. Uma guia com um grupo de turistas entrou na estreita rua de paralelepípedos. Eu fechei minha camisa, e me virei antes que me vissem naquele estado.
Mesmo não sendo católico, entrei na igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, sentei-me num dos bancos, e fiz uma prece. Agradeci a Deus por mais aquela oportunidade, prometi melhorar, e fui embora.



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